Viagem, leitura, telefonemas,  diversão

Ainda sob os efeitos dos recentes acontecimentos que modificaram por inteiro nossa vida familiar, tive de aceitar, não sem prazer, é verdade, o convite de Ana Lúcia,  minha filha mais velha, para  ir a sua casa em Lençóis Paulista, neste último final de semana.

O objetivo declarado da viagem era uma reunião  como aquelas que por tanto tempo se deram aqui em casa, ou mais antigamente, na de meus pais. E assim, sob chuva, lá fomos minha única irmã, meu cunhado, meu filho caçula e eu cortando boas estradas, apreciando mares de canaviais, percebendo as mudanças de topografia, comentando as miudezas do cotidiano, admirando-nos com os sinais evidentes de progresso na região central do estado, evocando pessoas e fatos idos com a rápida passagem dos dias.

A bela casa, apesar de ampla e confortável, não poderia mesmo alojar as muitas pessoas que aceitaram aquela espécie afetiva de convocação. Além de minha filha, de meu genro José Geraldo e de Eduardo,  o caçula dos três filhos deles, estávamos nós quatro de São José, mais o pessoal de São Paulo e alguns agregados.

Teria muito que falar sobre os bons tratos recebidos, sobre a variedade das comidas e bebidas que não só aplacaram fomes e sedes, mas também satisfizeram gulas declaradas. Uma das refeições, toda com pratos chineses feitos a capricho por um restaurante da cidade, foi de nos prender à mesa enquanto  houve o que ingerir.

Pude prestar muita atenção às pessoas, ao modo diferente de como filhos se relacionam com pais, como primos tratam primos, como netos se sentem bem com os avós. Pude, enfim, para satisfação minha, notar a firme presença do sentido de família, de organização, de disciplina, da autoridade paterna/materna sendo exercida com brandura mas com energia.

Notei certo esforço generalizado de não se deixar que o assunto Marina, minha mulher falecida há exatos dois meses no sábado, dominasse as conversações, talvez por terem receio de não estarmos preparados para falar menos emocionalmente sobre isso. Puro engano. O tema da morte entrou e saiu inúmeras vezes, e com naturalidade.  Lembrei-me, guardadas as diferenças, do belo conto “O peru  de Natal”, de Mário de Andrade, em que o personagem-narrador tudo fez para que o pai, recém-falecido, não estragasse uma rara festa de confraternização familiar.

Não precisariam ter tomado tanto cuidado. Acredito que muitas pessoas guardem dentro de si uma espécie de culpa, como se devessem recriminar-se por não ter feito mais em favor de quem morreu. Em nossa família ninguém deve sofrer por isso: todos, cada qual à sua maneira, contribuíram sinceramente para que Marina tivesse um final de vida cercado de todo o amor, de todo o empenho, de toda a dedicação possível. Ela, com razões muito mais justificáveis do que o pai morto do conto de Mário de Andrade, se transformou por méritos próprios numa amável estrelinha no alto do céu e muito contribuiu para que nosso convívio no final de semana fosse verdadeiramente amistoso e evocativo.

 

DE VOLTA A CASA, encontro a minha espera, ofertado por pessoa de rara inteligência e superior cultura, um livro no mínimo estranho, daqueles capazes de nos fazer sentir ignorantes em tantos assuntos.

A cidade das palavras, de Alberto Manguel, com o subtítulo “As histórias que contamos para saber quem somos” (Companhia das Letras, Rio, 2008), é a prova mais que provada de uma notável tendência da cultura contemporânea: escrever-se não a respeito da própria vida, mas a respeito das vidas de muitos. Não há uma só página dele que não contenha  ao menos uma citação de autores de diferentes épocas e de diferentes línguas. Ao fim da leitura, não consegui imaginar o que  o poderoso escritor Alberto Manguel pensa de si mesmo, das pessoas e do mundo que as circunda. Uma vitória da erudição, já se vê, mas sem apresentar nada daquilo que nosso bom e velho Camões resumiu em saber de experiências feito.

Esse recurso tão próprio de teses universitárias –  cercar-se de mil fontes de referências a respeito de tudo e de todos, parece estar muito de acordo com o bombardeio de informações a que somos submetidos diuturnamente. Fiquei impressionado, nestas últimas semanas, com o palavrório inconsequente  que, por falta de notícias concretas, nos foi passado pela televisão, por jornais e revistas, pelo rádio, a propósito do avião da Air France que desapareceu no Atlântico, entre o Brasil e África. Ficou-se sabendo de minúcias técnicas inimagináveis a respeito do tal Airbus, de seu aparelhamento sofisticado, de sensores e de caixas-pretas, quando na verdade o que todos nós queríamos saber ainda era completo mistério – o destino das pessoas a bordo, os previamente desfeitos fios de esperança quanto à sobrevivência de alguns daqueles duzentos e tantos passageiros que formaram na formidável catástrofe aérea uma autêntica e moderna babel .

BOM MESMO, E INESPERADO, foi receber o telefonema de Nelsy, a viúva do querido amigo Adelino Brandão. Além de querer saber, com o interesse que só as verdadeiras amizades constroem, como é que eu  estou me saindo em meu novo estado, ela me dava importante notícia: aprendera a refazer seus caminhos sem mais contar com a mão firme e encorajadora do marido sempre atento e solícito. Aos poucos, reencontrou seus interesses no trabalho, na família,  na leitura, na vida cultural, no convívio com amigas...

Telefonema  promissor foi o de Anabelle Loivos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e incentivadora do ambicioso projeto “Cem anos sem Euclides”. Ela quer confirmação de presença no Seminário Internacional Euclidiano, marcado para fins de setembro em Cantagalo (RJ). A dinâmica professora cantagalense fala desde logo em me marcar a passagem de avião entre Campinas e Rio de Janeiro. De lá, serão mais de três horas de viagem por rodovia. A vontade é de aceitar desde logo, mas a experiência recomenda cautela, pois o homem põe e Deus dispõe.

 

SE TUDO CORRER A CONTENTO, logo mais à  noite irei ao cinema. Quem diria que esse fato corriqueiro em outros tempos fosse ter agora em nossa cidade um novo e inesperado sabor? Nunca me canso de considerar que na minha geração o cinema contribuiu muito mais do que o livro para a construção de nossa visão de mundo. Ir ao cinema foi, desde a meninice até a maturidade, o modo possível de iniciar a vida social, de sair em busca das coisas do muito longe, do muito diferente. A televisão já nos apanhou adultos, de gosto formado.

Agora, que a Folha de S. Paulo está lançando em DVDs vinte títulos dos Clássicos do Cinema,  dou-me conta da importância deles para mim e para meus contemporâneos: já assistira  a todos!  Exceção de dois ou três, ou muito antigos ou muito herméticos, vistos em cinemas de arte em São Paulo ou no Rio, os demais foram exibidos aqui, seja no velho Pavilhão  XV de Novembro (depois rebatizado como Cine São Francisco), seja no Cine Colombo, que mais uma vez reabre suas portas.

Por quanto tempo teremos cinema? Penso que dependerá muito da qualidade da programação, capaz de interessar um público adulto algo exigente e formar novos espectadores de menos idade. Sessões destinadas a  plateias específicas, de estudantes principalmente, muito contribuirão para o êxito financeiro  do empreendimento.

O Centro Cultural Ítalo-Brasileiro, proprietário do imóvel do Colombo, contribuiu no extremo de suas forças para que a cidade não perdesse sua boa sala de projeções. Poderia ter alugado para outros fins aquele cobiçado espaço, mas preferiu acertadamente esperar por outra solução, que acabou surgindo em alguns meses.

Agora, é ver para crer, embora se saiba que ir ao cinema jamais voltará a merecer um ritual próprio e de alta significação sociocultural, como mereceu em épocas passadas.

 

P.S. de quarta-feira de manhã:

Assisti a Uma noite no museu (II). Muita tecnologia, muito barulho e pouca gente . À saída, éramos  um pai, dois filhos menores e eu.

 

20/06/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

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