Antonio Candido

 
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Nem a provecta idade do ilustre morto torna menos lamentável o desaparecimento do professor Antonio Candido, aos noventa e oito anos.

Ainda bem que os principais veículos de comunicação do País conseguiram externar o  que sua morte representou como perda do certamente último representante de uma formação cultural que misturou nas exatas medidas a  capacidade de bem pensar, bem escrever e bem tratar problemas brasileiros, sob os mais diversos ângulos.

De fato, com a morte de Antonio Candido desaparece o último representante de um tipo de estudioso das mais diferentes formas de cultura, mais notavelmente a Literatura, a Sociologia, os Estudos Sociais.

Para mim, sua principal obra – Formação da Literatura Brasileira – está bem visível em minha estante desde 1960, com seus quatro belos volumes bem encadernados, em cuidadosa edição da Livraria Martins Editora. Até hoje é livro de indispensável leitura ou releitura. Consultá-lo é sempre motivo de prazer

Conheci Antonio Candido numa de suas vindas a São José. Ele deveria ficar hospedado em casa do Prof. Hersílio Ângelo, mas um curioso problema de incompatibilidade ideológica com outro hóspede o levou a preferir se deslocar até Poços de Caldas, onde tinha amigos de longa data. Lá pousou e depois voltou a São José.

Muito oportuna a relação de livros que Antonio Candido considera fundamentais para a exata compreensão do Brasil:

 

1.      O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro.

2.      Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

3.      História dos índios do Brasil, organização de Manuela Carneiro da Cunha.

4.      Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre.

5.      Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior.

6.      A América Latina, males de origem, de Manuel Bomfim.

7.      Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda.

8.      Os sertões, de Euclides da Cunha

9.      Coronelismo, enxada e voto, de Vítor Nunes Leal.

10.  A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes.

 

Recebo de minha filha Maria Paula um belo texto sobre o velório de Antonio Candido. Melhor do que comentá-lo é transcrevê-lo na íntegra:

 

 

Entre o esperado e o inusitado

Maria Paula Parisi Lauria

 Logo que soube da morte do professor Antonio Candido tive uma certeza interna de que gostaria de me despedir dele, e estar perto de pessoas que, como eu, o admiravam. Imaginei que o velório seria na Fefeleche, na USP, lugar público e aparentemente apropriado para receber as últimas homenagens ao ilustre professor da casa. Quando soube que seria no Einstein, hesitei um pouco, mas persisti na ideia de ir vê-lo e lá fui eu subir as colinas do Morumbi em segunda marcha.

Depois de percorrer largos corredores  e acessar o elevador inteligente do hospital, cheguei a uma grande sala, cheia de gente e coroas de flores. Ali estavam professores da USP, escritores, editores, ex-alunos do mestre, figuras proeminentes da intelligentsia brasileira que meus olhos foram reconhecendo aos poucos.  Gente mais velha, gente bem jovem, pouco importava: o tom era de homenagem contida àquela figura notável, de conduta irrepreensível nos seus quase cem anos de vida profícua.

Quando me aproximei da salinha em que estava o caixão, logo avistei uma senhora que chorava, amparada por um provável filho, em atitude de sincero pesar. Depois de vê-la saindo, postei-me ao lado do ataúde, fechado e sem grandes adornos, mas singelamente encimado por três rosas e três cravos. Não por acaso, pensei, todos vermelhos.

Estava ali para o que fora. Mentalizar e agradecer o grande legado deixado por Antonio Candido: seus escritos sobre literatura que me formaram, sua fala simples e tão articulada, emergindo das raras oportunidades que tive de ouvi-lo ao vivo, sua elegância de gestos e palavras, seu humor fino a permear os causos contados em perfeito timing de bom prosador e, sobretudo, sua lucidez ao tratar de nossa cultura e de nossa sociedade.

Estava eu ali, tão ocupada em olhar no dentro de mim mesma para içar essas memórias, que mal percebi, de pronto, o que me rodeava. Ao levantar a cabeça daquela leitura interna, enxerguei, do outro lado do caixão e bem em frente a mim, uma rodinha de três ou quatro pessoas. Nela estavam Laura, uma das filhas de Candido, mais uma ou duas mulheres. E Lula.

Demorei um pouco para elaborar que logo ali, no para além da morte cerrada em madeira, estava o ex-presidente da república. Não se tratava do Lula que dois dias antes respondia, enraivecido, as perguntas pseudo-plácidas do juiz Moro. Tampouco era o que, logo em seguida ao interrogatório, subiu ao palanque em Curitiba para vociferar sua vitimização e, sabe-lá-deus, iniciar sua trajetória para as próximas eleições. Era um Lula bem composto, de camiseta e blazer, que conversava frugalidades, ainda com seu jeito falastrão, um pouco mais comedido, em um grupo de velório. Talvez estivesse diante de mim, ainda viva, a parte de Luiz Inácio que clamava por justiça social, no período de abertura política, primeiros tempos de um PT pulsante que o próprio Candido ajudara a fundar e que por certo contribuíra grandemente para qualificar.

Entretanto existia entre nós, inegociavelmente, algo velado, já sem vida. Qualquer coisa como um sentido de ética parecia se encerrar ali no instantâneo da alegoria, junto com o esquife de  Antonio Candido. Estava eu diante de duas figuras eminentemente políticas, tão próximas mas também tão apartadas, cada qual ressoando em mim de lugares muito  distantes entre si, determinados por suas formações, escolhas e trajetórias.

Desviando-se um pouco da roda de conversa, Lula me olhou. Eu também olhei para ele. Ainda que o visse através das minhas lentes levemente rosadas, não lhe pude sorrir.

 

20/05/2017
emelauria@uol.com.br

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