Da cidade de todos nós
A propósito do 19 de Março, reflito sobre minhas relações com esta cidade. Hoje, como em outros tempos, mantenho com ela e com seus habitantes uma profunda afeição que se baseia tanto na circunstância de aqui eu haver nascido quanto no fato de aqui, por vontade própria, eu ter desenvolvido quase toda a minha carreira familiar, social e profissional. Espero que não seja tão logo, mas se o inesperado não entrar em cena, aqui também descansarei para sempre. Tenho endereço reservado: Rua 7, n.º 16, com vista privilegiada para o rio e para a montanha.
Para muitas pessoas, ávidas de viagens e de conhecimento de novas terras, soa estranho que eu me tenha dado bem na restrita área desta cidade, quando, se quisesse, poderia haver partido em busca de maiores oportunidades de trabalho e de ascensão profissional. Conforta-me saber que não estou só nesta espécie de contentamento em percorrer caminhos conhecidos, em achar sempre novidades na mesma paisagem e nos mesmos incidentes do cotidiano, em considerar como bens indisponíveis valores mais fáceis de aqui se realizarem, como a amizade, a solidariedade, a paz interior.
Dizem que os rio-pardenses não são lá muito bons acolhedores. Não concordo por inteiro com isso, mas entendo. É que, fundada por mineiros de Baependi e situada a menos de cinquenta quilômetros da divisa estadual, esta nossa cidade deve ter, mesmo, certa desconfiança de pessoas espalhafatosas, exibicionistas, muito senhoras de si. E sabemos, não por ouvir dizer, que um pouco de mineirice não faz mal a ninguém. A essas particularidades todas acresça-se o espírito em geral fechado do imigrante italiano e se terá a justificativa de sermos como somos.
Não raro, vozes saudosistas tentam fazer vigorar a falsa ideia de que tudo piorou por aqui, desde a qualidade das construções até a eficiência do ensino, mais particularmente na representação política. Fazem comparações infundadas entre pessoas de outras épocas e as de hoje, como se nossos atuais homens públicos não fossem, até com mais similitude, os detentores da mais legítima representação popular. Eles são o resumo do que são os rio-pardenses. Claro que os critérios de escolha da representação política atualmente levados em conta não vigoravam há trinta ou quarenta anos, mas entre isso e desqualificar quem agora exerce atividade pública – a distância é quilométrica.
Quem elege tanto os membros do Executivo quanto do Legislativo? Aqueles que acreditam na ação política de tal grupo ou qual pessoa, ligada a um bairro, a uma forte amizade, a uma súbita admiração, a disfarçáveis interesses, a promessas apresentadas como viáveis, a um motivo imponderável que, em última análise, representa a vontade soberana do povo, expressa no voto direto e secreto.
A partir desses critérios altamente subjetivos, não é de se estranhar que candidatos tidos e havidos como imbatíveis houvessem ficado fora dos quadros do Governo municipal. O fenômeno não é local, não é estadual, nem mesmo nacional. Os resultados eleitorais do mundo todo são indecifrável enigma a qualquer observador, ainda o mais tarimbado. O povo, em suas aleatórias escolhas entre direita e esquerda, entre progressistas e conservadores, entre antigos e modernos, faz jus ao la donna è mobile qual piuma al vento da ópera famosa. *** Não posso escrever sobre o 19 de Março sem me lembrar com muita afeição da figura ímpar da Prof.ª Amélia Trevisan, a rio-pardense honorária que tratou os pequenos problemas da cidade com a mais adequada visão histórico-científica.
Acostumada à leitura criteriosa de milhares de documentos com que lidou no Arquivo Histórico do Estado de São Paulo, Amélia Trevisan veio a São José do Rio Pardo prestar serviços junto à Casa Euclidiana e desde logo se enfronhou na História local e forneceu os elementos necessários à correta observação dos eventos históricos.
Ficou sabendo, por exemplo, que a 19 de março de 1970 a cidade havia comemorado, tardiamente e com a melhor das intenções, o seu centenário de fundação. Como conciliar isso com a ata que dava 4 de abril de 1865 como o marco inicial de sua existência? Forneceu-me os argumentos que tornaram possível a aprovação de meu projeto de lei, na Câmara Municipal, que concentrou em torno do 19 de Março as comemorações de fundação da cidade, reconhecendo expressamente a validade histórica da ata de 4 de abril de 1865. Perguntei-lhe então o que poderia ter ocorrido a 19 de março de 1870. - Nada, documentadamente nada – resumiu ela.
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Já faz uns bons anos, minha mulher e eu fomos passar alguns dias num local de grande beleza e baixíssima temperatura: Monte Verde, distante alguns quilômetros de Campos do Jordão, mas só acessível por uma estrada que começa em Camanducaia, do outro lado da serra da Mantiqueira. Camanducaia, lembrei, era a terra natal de Francisco Escobar, o amigo dileto de Euclides. O mapa explicava que entre Camanducaia e Monte Verde eram menos de vinte quilômetros por estrada asfaltada. Asfaltada como? Uma buraqueira sem fim, curvas perigosas, poeira de não se enxergar um palmo adiante do nariz. Acomodados no belo hotel, fui logo falar com o gerente a respeito das péssimas condições da estrada. Ele ficou muito sem jeito, mas acabou entregando o ouro: - Sabe o que é? As pessoas com casa por aqui não querem saber de melhorias na estrada. Têm medo do turismo de massa... Ah, bom, pensei com meus botões. Reservar aquela beleza toda só para alguns privilegiados era um elitismo de fazer dó.
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Às vezes, sem clara percepção do que fazem, pessoas que pensam amar a cidade acabam aceitando a triste idéia de que o bom, mesmo, é viver meio isolado do mundo, sem mexer em nada, repetindo à exaustão gestos e símbolos que se desgastaram à passagem dos anos. Tudo precisa evoluir e acompanhar os novos tempos que, queiramos ou não, chegaram e só vão para a frente, inexoráveis. ***
Ponho fé nas consequências do bom ensino e oportunidades práticas que as escolas técnicas estaduais conseguem oferecer a seu crescente número de alunos. Vejo com muita esperança o futuro da ETE de São José do Rio Pardo, da Fundação Paula Souza, dentro de algum tempo instalada em prédio construído a propósito. Lembro-me de que, há uns dois ou três anos, dei lá uma palestra. A postura respeitosa e participante do auditório contrastou nitidamente com o desinteresse que eu mesmo havia observado com outros públicos. Fortaleceu-se em mim a certeza de que só se dá o justo valor ao que tem um custo. Alunos que vão desmotivados à escola, que não veem obstáculo algum pela frente, com a aprovação no fim do ano garantida de forma automática, não podem mesmo valorizar sua escola, seu curso, seu mérito pessoal. ***
Voltando a Camanducaia: a praça principal da pequena cidade mineira se chama “Senador Francisco Escobar”. Tendo conhecido o então prefeito de lá, perguntei-lhe – mais para conferir do que para aprender – quem tinha sido o tal senador . Ele pensou um pouco e me confessou: - Sabe que eu não sei? Para não o colocar em situação constrangedora, também fiz de conta que nada sabia. Isso de as pessoas saberem a história local evita vexames e rende bons frutos. Um dia destes eu caminhava, como de costume, pelo Recanto Euclidiano, pela área de lazer. Um grupo de visitantes via com interesse a cabana, o mausoléu, aquelas inscrições todas. Uma delas se aproximou de mim e me pediu simples informações a respeito de Euclides da Cunha Filho, colocado ali ao lado do pai. Dei-lhe a notícia mais sucinta possível. Outras perguntas vieram e eu respondi com a máxima brevidade. Agradecendo-me a atenção, aquele interessado visitante quis ser gentil e me disse que eu bem podia ser o guia de turistas naquele local. Só me coube responder que, infelizmente, na minha idade eu não já podia pleitear ser funcionário público municipal.
20/03/2010
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