A Louca da Casa

 

Não, aqui não se tratará de expor à curiosidade pública aquele tipo exótico de mulher muito independente que costuma armar das suas, capaz de constranger as pessoas porque confunde falta de juízo com excesso de coragem.

É, na verdade, o título de um livro da relativamente jovem escritora espanhola Rosa Montero, lançado no Brasil em 2003, pela Ediouro, e que me chega cheio de recomendações.

Suas quase duzentas páginas se lêem em duas ou três sentadas, porque tudo nele é digestivo, assimilável até por paladares mais ou menos delicados. Nada de pensamentos complicados: quando muito, pensamentos arrevesados.

A autora, que vi/ouvi num dos programas Roda Viva, da TV Cultura,   uma dessas repórteres vividas, seguras, versáteis e cheias de idéias (muitas delas alheias), garante que o título de seu livro é empréstimo de uma frase de Santa Teresa de Jesus: A imaginação  é a louca da casa, o  que na opinião do anônimo apresentador da edição em língua portuguesa, “resume com perfeição o universo fascinante revelado neste livro indefinível que apresenta Rosa Montero ao público brasileiro. Mistura de romance, ensaio e autobiografia, a obra mais pessoal da escritora madrilenha é um percurso pelas reviravoltas da fantasia, da criação artística e das lembranças mais secretas. É um baú de mágico do qual emergem objetos inesperados e assombrosos”.

Como costumava dizer um personagem de Jô Soares, elevado aos cornos da lua pelo elogio fácil de seu admirador-bajulador: “Menos, menos...”

Mas não deixam de ser interessantes algumas colocações suas sobre o ato de escrever. Como por exemplo,  estas seguras observações contidas no primeiro capítulo:

... nós nos mentimos, nos imaginamos, nos enganamos. O que contamos hoje sobre a nossa infância não tem nada a ver com o que contaremos dentro de vinte anos. E o que você lembra da história comum familiar costuma ser completamente diferente daquilo que seus irmãos lembram”.

Ao acabar de ler esse trechinho, acho que cheguei a dar graças por não ter irmão mais ou menos contemporâneo meu. Minha única irmã é bem mais nova do que eu, de modo que posso ficar sossegado quanto à desabonadora possibilidade de alguém, num certo lance de minha meninice que terei contado com riqueza de detalhes e absoluta certeza de minha memória fotográfica, simplesmente me dizer, cara a cara:

-- Olhe, o que você escreveu a respeito de nosso avô é pura imaginação sua. Estive lá, bem junto a você, e não vi nada, nadinha, do que você pôs em letra de forma. Ele tinha bem menos virtudes e bem mais defeitos do que você quis passar adiante. Era apenas um velho solitário e neurastênico que nem sabia o nome dos netos!

Não sei se tem cabimento, mas gostarei de encaixar aqui esta frase: Nós vivemos porque os outros dão testemunho disso. Daí o grande drama dos muito velhos, que perderam todos os seus referenciais, todos os seus testemunhos.  Pronto, está colocada.

Ora, se nos enganamos a respeito de nossas lembranças, podemos perfeitamente nos enganar sobre nós mesmos. Ou, como reflete bem Rosa Montero:

“ De maneira que nós inventamos nossas lembranças, o que é o mesmo que dizer que nós inventamos a nós mesmos, porque nossa identidade reside na memória, no relato da nossa biografia. Portanto, poderíamos deduzir  que os seres humanos são, acima de tudo, romancistas, autores de um romance único cuja escrita dura toda a existência e no qual assumimos o papel de protagonistas. É uma escrita, naturalmente, sem texto físico, mas qualquer narrador profissional sabe que se escreve sobretudo dentro da cabeça.”

Pura verdade. A mágoa de quem escreve está em que o imaginado é sempre muito melhor do que o redigido. Ah, o indizível, o inefável!

E assim, com certa simplicidade e até falta de malícia, a espanholinha imaginosa adentra  notáveis questões de teoria literária, como a relação entre ficção e realidade, entre a verdade e a verossimilhança, entre a criação do enredo e a capacidade humana de preencher lacunas em qualquer relato.

Ela não citou a frase que vou escrever em seguida, mas por certo concordaria com ela: não existe composição literária mais imaginosa do que a autobiografia . Ou com palavras mais elaboradas:  Assim como o nosso cão é aquele ser que só vê em nós o melhor que somos, um texto autobiográfico não é a expressão da verdade comprovável, mas a vida contada como o autor gostaria que ela tivesse sido... Faz sentido, não?  A louca da casa apronta estripulias das grossas...

Duas personagens ocupam boa parte da trama romanesca do curioso livro: sua irmã Martina, que é e não é. E que, não sendo, muito me ensinou. E um personagem masculino (M.), o artista, o amor platônico, o homem de todas as idades e, infelizmente, também o muito amado que, como todo homem, é capaz de confundir Rosa e sua irmã Martina. (Haverá para uma mulher ofensa maior do que  seu muito amado a confundir com a irmã – potencialmente a amiga ideal e a pior inimiga – gêmeas e vertiginosamente diferentes?)

Mas uma das satisfações de quem lê um livro, mesmo  com certa pressa e total descompromisso,  certamente está em pinçar frases, sejam elas bonitas, sejam sintéticas, sejam contraditórias, sejam o que se chama um achado poético  --  aquela expressão da  capacidade que algumas pessoas têm de criar situações de estranhamento, quer dizer: aquele conjunto de palavras que fazem o leitor parar, fechar o livro, deglutir tudo aquilo  letra por letra e se perguntar a si mesmo: “Como é que não descobri isso antes?”

Lá vão alguns desses achados poéticos de Rosa Montero, colhidos aqui e ali, ao longo de seu livro que não deixa de ter seu sentido de humanidade, de expressão da  precariedade de tudo que se refira ao homem, a seus valores e a seus sentimentos:

O autor jovem fala de si mesmo, até quando fala dos outros, ao passo que o autor maduro sempre fala dos outros, mesmo quando fala de si mesmo.

Os ruídos da própria vida atrapalham. Por isso é preciso afastar-se.

Meu eu adormecido sabe que existe um eu acordado.

Outra das coisas que a gente aprende com a idade é pegar as coisas como elas vêm.

A esposa do escritor se transforma em sua mãe, sua enfermeira, sua secretária, soa empregada, sua motorista, sua ajudante, sua agente...

Educar uma criança supõe limitar seu campo visual, apequenar o mundo e dar-lhe uma forma determinada...

A essência da loucura é a solidão. A loucura é viver no vazio dos outros, numa ordem que ninguém compartilha...

É realmente curioso pensar na maneira como gostaríamos de ser lembrados.

O tempo esmigalha tudo, deforma tudo e apaga tudo.

Amar é dar o que não se tem a quem não é.

Publicar um romance é como arrancar o próprio fígado.

Não se pode ser puro sendo humano.

Morrer era não estar em lugar algum. Nem escondido, nem dormindo nem no outro quarto nem na outra casa.

Nada mau para um livro de jornalista espanhola, lido em espírito de férias, num janeiro particularmente chuvoso.

 

20/01/2007
(emelauria@uol.com.br)

Voltar