Panetone misto
NATAL Um homem, — era aquela noite amiga, noite cristã, berço do Nazareno, — ao relembrar os dias de pequeno, e a viva dança, e a lépida cantiga, quis transportar ao verso doce e ameno as sensações da sua idade antiga, naquela mesma velha noite amiga, noite cristã, berço do Nazareno. Escolheu o soneto. A folha branca pede-lhe a inspiração, mas, frouxa e manca, a pena não acode ao gesto seu. E, em vão, lutando contra o metro adverso, só lhe saiu este pequeno verso: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”
Reconheceu o texto? É nada menos que o “Soneto de Natal”, de Machado de Assis, transcrito de modo contínuo, sem respeito à metrificação. Em outros tempos, sabia-se isso de cor e falava-se da coragem do velho Machado ao tratar com ceticismo esse tema gratíssimo à alma brasileira. Hoje, é o que se vê: mudou o Natal e mudamos nós. O mundo mudou, certamente para pior. Nada, porém, que impeça as pessoas de boa vontade nos seus votos de boas-festas e felicidades no ano-novo.
SÍLVIO SANTOS E A CORREÇÃO Das poucas coisas de real proveito na televisão comercial brasileira está uma parte do programa de Sílvio Santos que mexe com as palavras, com a descoberta delas mesmas. É aos domingos, depois das sete. Pena que os participantes desses belos e bem bolados jogos nem sempre tenham o esperado nível, já que são escolhidos entre os vendedores dos produtos da Jequiti, do Baú e companhia bela. Bem diferentes os selecionados desses certames culturais nas tevês de outros países. Acompanho, sempre que possível e com renovado interesse, o Eredità (herança ) da RAI italiana; o Saber y ganar (saber e ganhar) da TVE espanhola; o dificílimo Que sais-je? (que sei eu?) do CANAL 5, francês. Sílvio Santos por vezes se mostra menos preparado do que seus revendedores, dando foras sem conta na grafia e significação das palavras. Agora leio num Caderno 2 que seu canal vai lançar uma espécie de mandamento, chamado Não mexei no lugar do SBT, ou seja, o SBT está firme no segundo lugar de audiência e acaba sempre ganhando da rival TV Record. O erro está que numa solene linguagem de mandamentos, o certo é Não mexais... O imperativo negativo usa as formas do presente do subjuntivo! Será que corrigirão, ou mais essa batatada passará incólume?
GENTE EM CANA Nunca, jamais, em tempo algum, neste nosso Brasil tanta pessoa graúda passará o Natal atrás das grades do que neste findante 2015. Até senador, até deputado federal, até ministro, mesmo sem serem presos, têm sido enquadrados em operações da Polícia Federal que ainda tem o gostinho de batizá-las com erudição e ironia. Ainda os que não estão atrás das grades, devem ter perdido muito da alegria de viver, sentindo o que na linguagem figurada se chama espada de Dâmocles, a sensação de que o mundo pode de repente cair sobre suas cabeças, apenas na aparência fora do alcance da lei. Depois da escolha de um nome um tanto estapafúrdio, como operação lava-jato, o lado erudito da Polícia Federal se manifestou diversas vezes; mais recentemente em duas fases do mesmo processo: operação zelotes e operação catilinárias. Não é todo o mundo que sabe ou se lembra de que zelote era o integrante de uma seita ou partido político radical que se opunha ao pagamento de tributos a Roma, além de pregar que Israel devia ter um único rei, o próprio Jeová. Catilinárias foi o conjunto das acusações que Cícero, o grande orador romano, proferiu no Senado contra o senador Catilina, acusado de tentar subverter a ordem pública vigente. Isso em 63 antes de Cristo. Quem é suficientemente velho a ponto de ter tido aulas de latim no ginásio, há de se lembrar como é que começava a primeira catilinária: Quosque tandem abuteris, Catilina, patientia nostra? Ou seja: Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? Tudo a ver com o momento atual, não?
VIDAS ROUBADAS Não há como não se condoer com a tristeza e a resignação daqueles que de repente veem um filho na flor da idade tolhido nas tramas do acaso, das pequenas falhas, do imponderável. É a dura hora de provar o quanto vale a lucidez da mente, a firmeza da fé, a certeza de que nada acontece em vão. O resto só pode ser o silêncio.
UM QUE CONCORDA O jovem estudante de História me escreve para dizer que está de acordo com o ponto de vista a respeito de licenciados por universidades públicas que nem pensam em lecionar. É ele Carlos Eduardo Pereira, quase xará de Eduardo Carlos Pereira, o sisudo autor de uma Gramática expositiva que foi o terror de muito estudante do milênio passado. Ótimo, Carlos Eduardo! Nosso ensino só melhorará com sangue novo de gente idealista que não treme frente a dificuldades mil.
DOIS FILMES DE FAZER PENSAR Um osso duro de roer é Adeus à linguagem, do sempre inesperado Jean-Luc Godard. Eis a sua súmula: Uma mulher casada conhece um homem solteiro e eles se amam, eles conversam, punhos ao vento. Um cachorro perambula entre a cidade e o campo. O tempo passa, o homem e a mulher se encontram novamente. O cachorro fica no meio dos dois. Ele está nela, ela está nele e eles são três. O ex-marido quebra tudo. Um segundo filme começa igual ao primeiro, mas envereda por outros caminhos cheios de metáforas. Termina em latidos e no choro de um bebê. Fim. * Bom, mesmo, é A teoria de tudo, baseado na incomum vida de Stephen Hawking, aquele astrofísico inglês, hoje com setenta e tantos anos, que formulou inovadoras teorias sobre a origem do universo. Atacado por incurável doença motora que se manifesta quando ele tem vinte e um anos, os médicos lhe dão apenas dois anos de vida, mas ele se sobrepõe a tudo. Casa-se, tem filhos com uma estudante de literatura francesa e espanhola. A mulher, depois de se dedicar por inteiro ao marido durante muito tempo, acaba por trocá-lo por outro sujeito, mas ele também se arranja com sua compreensiva cuidadora. Seu livro Breve história do tempo vendeu cinquenta milhões de exemplares. Ele, mudo por causa de uma traqueostomia, se comunica através de sons emitidos num teclado especial que ele controla com um só dedo – o que ainda obedece ao cérebro. Filmaço, embora triste demais.
19/12/2015 |