Amigo perdido

 
O Cristo visto do Millennium

 

Foram necessárias duas leituras atentas para eu me convencer de que aquele texto era meu. Achei o assunto interessante e, no meio da primeira leitura, interrompi-a para ver se me lembrava de sua continuidade e de seu desfecho. Nada! Bom, concluí para mim mesmo: se eu não me lembro de nada do que escrevi num longínquo ano final do milênio passado, meus sobreviventes leitores também de nada se lembrarão.

Esse mesmo raciocínio animou o cronista-mor da cidade, Rodolpho Del Guerra, que vem tendo escritos seus republicados na Gazeta do Rio Pardo. Ele me garante que ninguém reclama dos repetecos.

Sei que há leitores de memória elefantina, que sentem pelo faro o que já publicado e me comunicam a descoberta destas pequenas falcatruas que por vezes faço. Um deles  é o Trinca, aqui do DEMOCRATA; outro é um brilhante advogado que já escreveu coisas boas para este mesmo jornal — José Luís Nóbrega.  Os dois são implacáveis na detecção de reaproveitamento de  textos.

 

Conto eu que em ensolarada manhã, depois de uma boa caminhada na pista do antigo aeroporto, que me fazia suar e almejar por uma boa chuveirada, vi um sujeito passeando com um menino ao lado.

Reconheci-o logo e não fiz o menor esforço de me aproximar dele.

Foi no meio do curto caminho entre a pista e meu carro que topei com inesperada pedra: a mulher dele. Cumprimentei-a o mais gentil que pude, acenei-lhe com a mão, mas não diminuí o passo. Provavelmente ela já me acompanhava com os olhos e haveria de ter percebido minha manobra de evitar-lhe o marido.

Com ela, eu mantinha pouca prosa, nenhuma familiaridade. Com ele, não. Tantas vezes, depois que ele se mudara daqui, ao nos encontrarmos, trocávamos palavras afetuosas, conversávamos sem tédio nem pressa, um se interessando cordialmente  pela vida do outro. Também, vizinhos por quanto tempo? Íamos juntos ao grupo escolar, ele uns anos mais velho do que eu. Brincávamos juntos no grande quintal então à disposição da meninada — o campo do Rio Pardo Futebol Clube.  Depois, nossas  vidas se distanciaram, eu prosseguindo estudos, ele caindo firme no trabalho. Às vezes, naqueles encontros que raleavam, já não tínhamos assunto, nossos mundos estavam ficando tão diferentes. Mas o passado supria tudo e nele nos refugiávamos com segurança, agarrando-nos a pessoas e situações que ainda nos uniam na memória comum.

*

O que me teria levado a evitá-lo na manhã de tanto sol? Não fazia tanto tempo assim que não nos víamos; um sabia como o outro estava, o quanto nos raleavam os cabelos, como nos progrediam os sulcos no rosto, eu lutando contra a balança, ele magro, fumando sempre e não perdendo ocasião de me dizer quanto me invejava a disposição de abandonar de vez o cigarro. Eu, era de esperar, elogiava sua barriga de tábua, sem o mínimo sinal daquela crescente boia que em mim circundava os quadris. Éramos um para o outro o documento vivo de uma bela época que já ia longe.

E eu me desviei dele no mais momentâneo impulso. Nem tive tempo de pensar e já estava frente à sua mulher. Bem que me passou pela cabeça voltar, fazer festas a ele, perguntar de sua vida, de seus filhos. Quem sabe convidá-lo a uma chegada até minha casa, a almoçar mesmo. Mas e senso do ridículo? E a certeza de que a mulher dele me acompanhara de longe e notara meus esforços de ignorá-lo? Não, e pronto. Era tocar o carro e assimilar o incidente que (é bem possível) só deve ter existido na minha ideia.

*

O pequeno episódio durou em mim o que duram atitudes tomadas sem premeditação nem sentimento de culpa. Prometi a mim mesmo que no próximo encontro seria especial o tratamento dispensado a meu amigo distante. Assim se encerraria o caso.

*

Até que algum tempo depois,  chegaram com uma notícia esgarçada, incompleta, mas dolorosa no essencial. Uma vizinha, colhendo informes de terceiros, contou a pessoa de minha casa que ele, meu amigo, morrera. E de morte violenta. Longe daqui.

Nada mais se saberá, por ora, que não seja um pouco deturpado por gente imaginosa, capaz de suprir quantos detalhes sejam necessários para um fato ganhar conteúdo e ares de veracidade.

Demorarão dias até que se saiba como foi na realidade a morte violenta de meu amigo. Na versão melhorada que corria à noite, já ficou assentado que tinham sido seis tiros. O mais virá a seu tempo.

*

Eu não gostaria que ele tivesse morrido decepcionado comigo. Que, por exemplo, sua mulher lhe tivesse comentado, com deliberado espírito de azedar situações, como foi que passei correndo por ela, na manhã de tanto sol. Não gostaria de saber que ele tivesse exteriorizado a meu respeito uma frase assim: "O que é que eu fiz para ele não querer conversar comigo?"

*

Releve meu gesto naquela manhã, meu amigo morto. Não era só a pressa, não era só o calor. O desconforto era comigo mesmo. Quem sabe a hora não estava para efusões e para repetitivos retornos à nossa infância tão longínqua? Uma boa amizade como a nossa precisa resistir a silêncios e a ausências.

*

Ganha corpo uma hipótese  absolutória: e se naquela manhã de sol meu amigo, feliz de estar ali em paz e a sós com o filho, também tivesse feito de conta que não me viu?

*

Agora há pouco, a vizinha que foi o elo derradeiro da cadeia de jornalismo oral, chega meio desenxabida aqui em casa:

- Que bom, hem? Ele não morreu nada!

*

Então, com cara de desculpe-nossa-falha, tenta explicar que o morto a tiros é alguém da família de meu amigo, alguém que por aqui nem conhecemos.

*

E agora? Depois da evaporação do remorso que por momentos chegou a crescer em mim, enfrento grave dilema:

- Convido, ou não, meu amigo a jantar aqui em casa?

*

Até aqui o texto de 1996.

Dou término definitivo ao assunto:

Meu amigo morreu de morte natural, anos depois. Se continuasse vivo, hoje teria até bisnetos.

Sua viúva voltou a morar por aqui. Encontro-a raramente e  mal trocamos um dedinho de prosa formal, como se apenas  prestássemos homenagem à memória do morto. Procurei nos seus olhos algum leve sinal de ressentimento para comigo. Nada encontrei. Nem ressentimento nem estima. Positivamente não sou de seu círculo de amigos.

*

Última surpresa: descubro que "Amigo perdido"  está no meu livro Nós, os nossos, alguns intrusos, de 1997. Com certeza o Trinca e o Nóbrega se  lembraram disso na segunda linha deste ressolado texto.

 

19/10/2013
emelauria@uol.com.br

 

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