Quitação da dívida

 
Floresta doméstica.

 

Aquele padre novo assumindo o lugar de pároco? Por quase quarenta anos ali reinara o velho monsenhor de nome alemão, agora  recolhido a uma casa de repouso.

No primeiro sermão, a primeira novidade:

- Esta nossa matriz é bonitinha e tal, mas muito acanhada. A cidade está crescendo. Precisamos pensar grande,  num templo majestoso, que sirva até de catedral, se for o caso.

E assim a bela igreja, de linhas elegantes, projeto do mais conceituado escritório de engenharia da São Paulo de outros tempos, recebeu sua prematura  sentença de morte. Muita gente foi contra, mas prevaleceu a vontade do padre moço.  Hoje ninguém teria coragem de botá-la abaixo.

Lentamente, ano após ano de trabalhos e campanhas, rifas e quermesses, além das doações de alguns ricaços, a nova matriz neogótica foi tomando forma e desde logo utilizada na sua parte posterior, tudo ainda no tijolo bruto, o chão áspero e sem nenhum acabamento. O que haveria de ser um dos altares laterais, passou provisoriamente a altar-mor.

Pois foi naquela fase penosa da lentíssima construção que o marmorista, calvo desde muito moço,  resolveu fazer uma visita com olho crítico às obras.

Era bem à tarde, o trabalho dos pedreiros tinha já terminado. Ele se encontrou sozinho no meio daquela amplidão toda, quando percebeu que uma pessoa se aproximava do altar provisório, fazia o sinal da cruz, inclinava-se com respeito e depositava alguma coisa sobre ele, saindo em seguida.

O que teria o desconhecido colocado no altar?  O marmorista careca aproximou-se e viu duas notas de dois mil-réis,  daquelas azuis, com o Duque de Caxias cheio de medalhas. Olhou ressabiado para um lado, para trás, para o outro. Ninguém à vista. Sua vontade de tomar uma cervejinha no cair da noite foi maior do que o remorso de furtar. E não seria um furto qualquer. Furto sem perdão isso de tirar dinheiro de dentro de uma igreja. Dinheiro de esmola! Pensou mil coisas, em que diria sua mãe, tão devota.  E o pior: no castigo do purgatório, forma de desagravar aquele feio ato que estava prestes a cometer. Puxa vida, tinha dado duro a semana inteira, enchido a roupa, os olhos e os pulmões com aquele pó miserável da pedra serrada, e não dispunha de  um mísero trocado para tomar uma ou duas garrafas de cerveja Hamburguesa Faixa Azul!

Respirou fundo, meteu as duas cédulas no bolso e saiu dali, sem sequer fazer menção de ajoelhar-se e persignar-se.

Na porta do bar  o seu velho conhecido bicheiro, que lhe perguntou se não ia fazer a costumeira fezinha no cachorro ou no leão. O bicheiro  estava precisando juntar dinheiro para comprar uma égua que levasse sua filha a lecionar numa fazenda. A charrete já tinha, só faltava o dinheiro para a égua, uns mil cruzeiros.

- Não, não quero saber de jogo agora. Quero tomar minha cervejinha, porque estou com a goela seca.

Talvez o primeiro gole tivesse descido com dificuldade. Os outros não.

Então aconteceu o incidente causador desta história: uma vizinha estava com uma nota de duzentos cruzeiros na mão e pedia ao dono do bar que a trocasse ao menos por duas de cem. Isso foi feito. Foi aí que o bicheiro, de cabelos pretos escorridos, óculos de grossos aros, entrou com sua lábia profissional para cima do marmorista:

- Olhe aí, rapaz. Que belos números os desta nota. Bons palpites! Quem não arrisca não petisca!

E assim, parte do dinheiro surripiado do altar virou um jogo do bicho.

Quem me contou este caso, um exagerado por origem, colocou em sua narrativa muitos detalhes forjados por sua imaginação criadora, mas não me explicou direito quando nem onde o marmorista careca foi procurado pelo amigo apontador de jogo de bicho. Apenas me disse que o bicheiro chegou perto do freguês e lhe apresentou um pacote embrulhado com folhas de jornal.

- Abra isso – ordenou.

- O que tem aí?

- Abra...

O marmorista careca abriu o embrulho e pôde ver uma maço de dinheiro grosso,  empilhado.

- Que é isso? – perguntou incrédulo.

- Você acertou seco no milhar, rapaz!

- Eu?!!

- Você... Sozinho!

- Não sou de ganhar nada...

- Pois desta vez ganhou. Quarenta e quatro contos!

(Ninguém de certa idade deixaria de empregar contos, contos de réis, em lugar de milhares de cruzeiros. Acho exagero de meu informante o valor do prêmio.)

- Quarenta e quatro contos de réis!!! Vou tirar o pé do lodo!

- É isso. Jogo do bicho é coisa séria, quem ganha leva...

Bonito o gesto do marmorista careca, depois de receber e conferir a bolada:

- Olhe, José (era o nome do bicheiro), estou tão feliz, que vou lhe dar o suficiente para você comprar quatro éguas: quatro contos... (Outro exagero do meu informante.)

E ali mesmo separou a quantia e a entregou ao incrédulo e comovido José, pouco acostumado a gestos de agradecimento dos favorecidos da fortuna.

Seu próximo passo qualquer leitor atento e conhecedor da índole de nossa gente já adivinhou. Isso mesmo, limpar a barra junto aos santos do altar furtado. O novo rico procurou o padre, adiantando que queria tratar com ele assunto de muita importância. O intermediário foi o sacristão, que voltou com a resposta:

- O padre mandou dizer que agora não pode atendê-lo. Se for caso de confissão, é para o senhor ver os horários, na porta da sacristia.

Não, não é caso de confissão. É caso de doação.

Ah, a palavrinha mágica.

- Pois não, senhor, disse o padre que de repente arranjou tempo. Fico satisfeito em saber que contribuirá para as obras de nossa igreja.

- É verdade, seu padre. Fui feliz num negócio e me vejo na obrigação de contribuir. Não quero que ninguém fique sabendo de meu gesto. O senhor me promete?

- Fique sossegado. Eu louvo a sua atitude, que tem base evangélica: “Não saiba a mão esquerda o que a direita fez”.

-   É isso. Aqui está um conto de réis em dinheiro, que lhe entrego em confiança...

- Um conto?

-  Um conto... Mil cruzeiros, como dizem agora.

- Deus lhe pague. Muito obrigado. Esse dinheiro caiu do céu e servirá para pagar salários atrasados dos operários.

O marmorista careca saiu da casa paroquial, atravessou a rua e entrou na igreja. Dirigiu-se ao altar, persignou-se, ajoelhou-se, devolveu os quatro cruzeiros surripiados e ousou encarar  os santos todos. Nenhum deles lhe pareceu contrariado ou de cara feia. Era o sinal de indulgência plenária.

Meu informante me garantiu um pormenor: o marmorista durante mais de cinquenta anos nunca contara nada  a ninguém. Só lhe revelou tudo porque o tempo passara e não sobrara ninguém para confirmar ou desmentir seu relato.

Como dizem os italianos, si non vero, bene trovato.

 

19/09/2015
emelauria@uol.com.br

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