Mais uma do Mequetrefe

 
Da janela da Biblioteca.

 

Leitores habituais sabem quem é Mequetrefe, um colega de distantes eras ginasiais que reapareceu por aqui, depois de mais de  meio século. Reata amizade comigo, fala um pouco de mal da cidade – uma paradeira, no seu resumo pessimista –,  conta seus casos pessoais, cai de novo no mundo  e logo depois resolve morrer, não sem antes me fazer depositário de um grosso caderno cheio de anotações, em boa parte de difícil decifração.

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Valendo-me do tal cadernão e lembrando-me do relato   de viva voz que ele me fez aqui em casa depois de duas ou três inocentes cervejinhas, procuro remontar uma história que tem lá sua delicadeza e seu lado triste de romance à moda antiga.

O local é Vitória da Conquista,  cidade do sul da Bahia, na década de sessenta. Lá assentou barraca o Mequetrefe, encarregado pela Superintendência Regional da Polícia Federal de seguir os movimentos de quadrilha especializada em roubar fazendas de gado e encaminhar o produto para centros consumidores de outros estados.

Nem é preciso dizer que ele chegava a esses lugares e procurava estabelecer um tipo de vida que não despertasse suspeita quanto à atividade que exercia. Para isso, era bom se mostrar sempre, conversar, ser expansivo,  fazer todo tipo de amizade, envolver-se com uma  ou outra mulher. Esses eram, segundo me explicou o Mequetrefe, sinais evidentes de vida normal – de grande valia em variados lances de sua vida profissional.

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Não foram diferentes desse padrão seus primeiros dias na cidade baiana. O que destoou desde logo de sua rotina foi a perturbação que lhe causou a radiosa  beleza de Yone e a presteza do cerco que sua família montou em redor dele, tido como um bem apanhado forasteiro. Mais do que a mãe de Yone, dona Sabina, a casamenteira era a tia Fiúca, agente do  correio  e chefe do clã, depois da morte do irmão mais velho das duas, Leopoldo.

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Yone era bonita, jovem e destinada a se casar com Alfredo, primo distante, que concluía  Medicina em Salvador.  Aconteceu um porém na vida do primo distante: ele se enroscou não só afetivamente com uma colega de faculdade, filha de deputado federal e afilhada de batismo do paizão de quase todos os baianos – Antônio Carlos Magalhães,  o ACM. Daí não  houve jeito: o quase doutor e quase noivo  escreveu cerimoniosa carta à família de Yone, deu o dito pelo não dito, alegou razões superiores à sua vontade  e nunca mais apareceu na terrinha da quase noiva.

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Depois de bem examinar a bela estampa do Mequetrefe e seu jeitão de sujeito de posses, tia Fiúca achou que ele seria um  bom partido para a descartada, sim, mas bela e sensível Yone. Convidou o forasteiro a entrar num joguinho quase a leite de pato que acontecia às terças e quintas à noite em sua casa,  para uma restrita roda de amigos. Mequetrefe foi, viu e gostou. Gostou do ambiente, do nível dos jogadores de canastra, gostou mais de Yone,  estrategicamente colocada a seu lado pela tia Fiúca. Yone era de fato uma bela figura, foi pensando Mequetrefe, que  a olhava de soslaio e não se cansava de lhe  notar os traços  suaves, as mãos delicadas, o peito arfante e tudo o mais que um homem tem para observar enquanto ainda se preocupa em não descartar um curinga, por falta de concentração no jogo.

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Não vou detalhar os passos dados na transformação de um conhecimento convencional em namoro sério, muito apreciado por dona Fiúca , que via como obrigação sua casar a sobrinha Yone, como se fora do casamento não houvesse salvação eterna  nem razão de viver.

Bem comportado o namoro  de Paulo (era o nome de batismo do Mequetrefe, lembram?) e Yone, como se os dois tivessem a certeza de  aquilo tudo estar fadado a terminar em nada. Aceitaram  o empenho dos outros, mas  cada um sabia o que esperar: os dois gostavam de estar juntos, demonstravam isso; contudo, não nutriam ilusões descabidas. Mequetrefe, por ser um sujeito vivido, policiava (sem trocadilho) com rigor tanto seus atos quanto suas palavras; Yone,  por não ter grandes motivos de confiar em algum homem, também criou uma espécie de  casca protetora de sua afetividade.

Mequetrefe introduziu logo nos primeiros encontros com Yone uma cláusula absolutória:  fez a moça saber que ele não era de parar muito num lugar, que seus afazeres o obrigavam a constantes viagens e longas demoras. Só lhe faltou coragem para lhe dizer: “Olhe, acho você uma mulheraça,  gosto de você, de sua companhia, mas não pense num futuro certo, num compromisso irrevogável.”

Apesar de tantas e mútuas provas de maturidade emocional, o convívio deles  era prazeroso e dava fundadas esperanças de dias melhores aos planos de dona Fiúca e sua passiva irmã, dona Sabina.

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Enfim chegou o dia que Mequetrefe gostaria que demorasse bem mais: preso o bando de ladrões de gado, não havia mais razões de sua permanência em Vitória da Conquista e adjacências. Ele teria uns dias para se apresentar na Regional de Belo Horizonte, onde receberia nova missão.

Mequetrefe pesou com cuidado as palavras que diria a Yone  anunciando a partida. Foi com certo espanto que ele  ouviu dela expressões de tranquilidade e de compreensão.

- Nós sabíamos que seria assim. Só lhe peço  que agora deixe a meu encargo comunicar o fato a meus familiares e dar andamento às coisas.

A notícia que dona Fiúca e dona Sabina receberam da sobrinha e filha  foi lacônica e serena: dali a uns dias, Paulo iria viajar, depois tirar férias e voltaria logo que pudesse.

- Mas... – quis prolongar dona Fiúca, e Yone a atalhou:

- Fique calma, titia, assim que ele puder, voltará.

Na terça e na quinta-feira funcionou com regularidade a jogatina    entre amigos, embora pairasse no ambiente um ar de prévia saudade. Terminada a última noitada de canastra, houve uma como que geral colaboração e o jovem casal pôde ficar a sós e à vontade por mais tempo.

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Na sexta de manhã, Mequetrefe avisou à namorada que viajaria no dia seguinte.

- Não diga nada a ninguém, determinou a moça. Nossa despedida será hoje  à noite e minha família saberá por mim   de sua viagem e bem depois de sua partida.

O dia demorou a passar, ainda mais que Mequetrefe precisou de grande esforço para não revelar a ninguém que estava de partida e que não voltaria àquela cidade.

Pela tardezinha, um bilhete de Yone o esperava na portaria do hotel em que se hospedava: “Às nove da noite, venho fazer uma visita a você. Espere-me no salão do hotel”.

Sem nada entender, só restou a Mequetrefe aguardar o arrastado das horas e o andamento das coisas sob o comando firme e decidido da namorada.

Logo depois das nove, Yone chega resoluta ao hotel e se encaminha para onde Paulo a esperava ansioso. Estava só ele no vasto salão.

- Boa noite, Paulo.

- Boa noite, Yone.

- Sabe, tenho umas coisas para conversar com você...

- Pois não, Yone. Vamos dar uma volta por aí?

- Não, prefiro que nossa conversa seja no seu quarto.

- No meu quarto? – e Paulo estava apenas atônito.

- Sim, no seu quarto. Haveria lugar mais discreto e sossegado do que seu quarto para uma boa conversa e uma longa despedida entre nós?

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Mequetrefe nada mais acrescentou, nem mesmo quando me relatou isso tudo de viva voz.

Não restou nenhuma dúvida de que a conversa foi demoradíssima e a despedida  das mais inesquecíveis na aventurosa vida de meu amigo Mequetrefe, que nunca mais voltou a Vitória da Conquista, florescente cidade do sul da Bahia.

 

19/04/2014
emelauria@uol.com.br

 

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