Atento aos ecos
É verdade que cheguei a publicar, até em livro, longo artigo chamado “Para que(m) escrevemos?”, cuja conclusão é esta: escrevemos para nós mesmos. Verdade, sem dúvida, mas daquelas verdades que podem ser mais bem explicadas. Sempre escrevemos para nós mesmos, mas ficamos muito satisfeitos quando nos chegam provas de que outros nos lêem. Afinal de contas, a comunicação é um processo dialógico, exige partida e contrapartida, mensagem de ida e mensagem de volta. Deve ser duro ficar escrevendo sozinho, sem obter aquilo que na teoria se chama retroalimentação ou feedback... Respostas favoráveis reanimam, realimentam. Agradeço de público a quem faz assim comigo. Não é da tradição do leitor brasileiro ficar dando muita satisfação a quem escreve. Especialmente não é dessa tradição escrever para dizer que aprova o escrito. Se não concorda com nosso texto ou com alguma das idéias nele contidas, é mais possível que o leitor se manifeste, quase nunca por escrito, quase sempre de viva voz, quando der, se der, num encontro casual, um ou dois meses depois... Assim como que por acaso, en passant, como dizem os franceses. O que vem mudando essa atitude meio comodista de quem nos lê, é a internet. Fica muito mais fácil o sujeito me mandar um e-mail do que redigir um texto, sobrescritar envelope, colocar a carta no correio, especialmente se precisar comprar o selo, coisa baratíssima, porém de difícil localização. Basta imaginar que a ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos ) detém o privilégio da correspondência postal em todo o território nacional, mas não vende selo! Se você chega ao balcão do correio com a intenção de comprar selo para uma ou duas cartas, terá baita surpresa: o funcionário, pode ser até que gentilmente, explicará que lugar de conseguir selo de correio, ao contrário do que você possa pensar, não é no correio, mas no barzinho da frente ou do lado. E explicará que a ECT cuida de outras coisas, além de cartinhas familiares. Recebe prestações do Baú, faz serviços bancários, cuida de um mundo de carnês, envia Sedex para o mundo todo, tem mil outras atividades de grande porte. Cartinha familiar não dá lucro, ainda mais que existe a tal correspondência social cuja postagem custa, ou custou até há pouco, dez centavos... Com a internet, tudo mudou de figura: você recebe alguma coisa por ela, ou lê um jornal e, na hora, sem mais essa ou aquela, redige sua resposta ou levanta sua objeção e manda para o escrevedor. Progresso incrível, acima da capacidade de compreensão ou de aceitação dos mais velhos, porque os mais novos nem se dão ao trabalho de escrever: comunicam-se de viva voz, numa linguagem particularíssima, cada vez mais distante dos padrões tradicionais. É pela internet, e mais raro pelo telefone, que fico sabendo o que os outros pensam do que escrevo. Assim é que, por causa do que escrevo, tenho redescoberto parentes que moram longe, ex-alunos saudosos de tal ou qual escola, pessoas que um dia moraram na cidade e foram embora daqui, perdendo inteiramente o contato com tudo e com todos. A internet reaproxima gente, refaz velhas amizades, cria outras novas, alarga os círculos de relacionamento. Há muitos que não pensam assim: vêem na internet e no telefone celular dois dos mais poderosos recursos da maldade e do pecado. Como deve estar percebendo meu paciencioso leitor, estou hoje disposto a digressões, idas e vindas, cheias de frases intercaladas que muitas vezes têm grave conseqüência: acabar com a paciência dos outros, que interrompem a leitura porque não estão aqui para perder tempo. Para alguém como eu, que escreve desde quando saber dactilografar era o supra-sumo do progresso, as atuais facilidades de se mandar matéria para publicação parecem coisas de pura ficção científica. Lembro-me do ritual que era fazer chegar um original a um jornal. Primeiro porque quase ninguém sabia escrever à máquina e então mandava os originais manuscritos.O jornal que se virasse na decifração de hieróglifos e barbaridades gramaticais. Segundo, porque o texto era composto em linotipo, máquina de aspecto antediluviano que fundia linha por linha e expelia constantemente gases saídos de uma panelinha, por assim dizer, de chumbo derretido. Linotipista era (e talvez ainda seja) profissional que enfrentava alto risco para a saúde, aposentando-se bem antes dos outros. Além do mais, tinha direito a um litro de leite por dia, para evitar intoxicação. Ao que constava, porém, era raro o linotipista que bebesse tanto leite. Preferiam substituí-lo por umas boas cachacinhas, de efeitos terapêuticos muito mais evidentes. Composto o texto, tirava-se uma prova dele. Se ocorresse um só erro, a linha precisava voltar à linotipo, ser rebatida, refundida. Um trabalhão. Depois, vinha a colocação do texto na página, mais uma prova de página inteira, até que... Era dose. Todo jornal que se prestasse, tinha um bom revisor de textos alheios – pessoas muito capacitadas quase sempre, que corrigiam não só os erros do linotipista, mas do próprio autor. Não conheci melhor revisor tipográfico do que Antônio Fernando Torres, na Gazeta do Rio Pardo. Era tido e havido como o “olho de lince”, porque enxergava erro até no escuro ou na curva. Devo a ele rigorosas revisões de meus livros, também. Aqui no Democrata, sei que o Luiz Trinca Filho e o Paulo Flamínio até hoje dão umas endireitadas em descuidos dos colaboradores. Só mexem na forma, não no conteúdo. Ainda bem! Enquanto digito este artigo, fico sabendo do falecimento de Eduardo Martins, devorador de dicionários, cobra criada em palavras cruzadas, autor de um precioso Manual de Redação e Estilo, que marcou e ainda marca a personalidade redacional do jornal O Estado de S. Paulo. Ele tinha, por exemplo, invencível antipatia por algumas palavras e expressões, de emprego proibido a redatores e repórteres e muito mal tolerado em artigos assinados: primeiro mandatário da Nação (por presidente da República), burgomestre (em lugar de prefeito), soldado do fogo (por bombeiro), necrópole (por cemitério), além de outras cracas de linguagem como nosocômio, agilização, programático, emergencial, alavancar, a nível de... Dois termos não são referidos diretamente na lista das antipatias, mas por certo seriam vetados por Eduardo Martins: proativo e... um outro que acho melhor nem citar, para não ofender pessoas que nutrem por ele especial devoção e até acreditam em suas propriedades miraculosas. Não raro, o Estadão , apoiado ainda no aval de Eduardo Martins, desobedece às normas da ortografia oficial. Dou dois exemplos: ao invés de escrever com minúsculas palavras que indicam acidentes geográficos, lá se prefere Lagoa Rodrigo de Freitas, Ilha Comprida, Rio Tietê... Nomes de cidades, então, são grafados como os moradores de cada uma delas gosta: Pirassununga, Mogi das Cruzes, Bagé, Mossoró, quando o correto seria Piraçununga, Moji das Cruzes, Bajé, Moçoró... Desisto de retornar à oração principal, perdida lá pelo meio da primeira página: a vontade que quem escreve tem de ficar sabendo o que os leitores pensam de seus escritos. Em verdade, em verdade (como usa S. João Evangelista), o que eu queria mesmo era tratar de outros assuntos sérios porém amenos. Mas como fazer isso, com o tremendo bombardeio dos jornais e da televisão em torno de dois temas cruéis? - A inacreditável morte da garotinha de seis anos, possivelmente estrangulada e depois jogada do sexto andar por pessoas em que poderia e deveria ter a máxima confiança. E a primariedade de um sujeito que ocupa nada menos do que a chefia da ANP – Agência Nacional de Petróleo. Boquirroto juramentado, abagunça o mercado internacional, influi nas bolsas do mundo todo e depois ainda pergunta com a cara mais inocente: - O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?
19/04/2008
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