Ano LXXX

 

Um dia da semana passada, completei setenta e nove anos de idade, o que, entre outras coisas menos dignas de reflexão, abriga o fato cronologicamente inevitável de também entrar no octogésimo ano de vida.  Para isso, completei  setenta e nove.

Sei que muita gente não gosta dessa comprovação, mas é pura verdade. Quando uma criancinha dá o primeiro vagido, entra no primeiro ano de vida. Quando se funda um jornal ou revista, o número 1 é acompanhado da expressão “ano 1”. Não existe o ano zero...

O ruim de se entrar nos anos oitenta é que caem por terra todas as atenuantes  quanto à implantação da velhice. Em lugar nenhum do mundo, octogenário não é velho. Sim, porque há especialistas na difícil arte de dourar pílulas.  Provam por a+b como a expectativa de vida vem aumentando, como a vida começa aos oitenta, como isso, como aquilo. Recebi diversas mensagens de internautas que tomaram todo o cuidado de não me lembrar que no dia do aniversário inevitavelmente também se fica mais velho.  Tratam o decurso do tempo como inimigo que pode ser vencido. Engano ledo e cego, sabe-se desde o jardim do Éden, desde Neanderthal.

 

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Tenho alguns amigos, dos mais caros, que me acham preocupado em demasia com o tempo, com a idade. Reconheço isso, quem sabe pelo receio de cair no extremo oposto, quer dizer, ficar disfarçando os efeitos do tempo, retocando aqui, amenizando ali.

O marquês de Maricá, autor de umas  Máximas às vezes sem a mínima inspiração, disse com autoridade que poucas coisas haverá mais ridículas no mundo do que um velhote que não aceita a sua condição etária. Também é dele esse forte comprovação: “Estuda-se mais na velhice para bem morrer do que se estudou na mocidade para bem viver”.

 

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Lembro-me da bela lição que uma senhora de minhas relações  me deu quando, na sua comemoradíssima festa de oitenta anos, eu quis ser-lhe agradável com aquela surrada conversa de que ela não aparentava a idade que dizia ter. Ela me rebateu filosoficamente:

- Hoje há recursos para tudo, ou quase tudo. As mulheres (e muitos homens também) fazem plásticas, implantes, tinturas, rebocam aqui, escoram ali, preenchem lá, esvaziam acolá, mas há dois lugares que traem terrivelmente: o pescoço  e os braços. Alguns pescoços de mulheres muito bem tratadas não perdem, apesar de tanto esforço, aquele triste aspecto de papadas de peru, moles, enrugadas, vermelhas... E os braços?  Mulheres não gostam de dar adeusinhos, se não usam roupas com mangas compridas.  Porque quando suspendem os braços, uma  parte bem flácida  lembra umas bandeirolas pairando ao sabor do vento... Homem velho que não exercita os braços, também.

 

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Mas com a passagem desenfreada do tempo, esses expedientes quase infantis de esconder idade perdem muito cedo a validade. O ingresso prematuro de meninas no circuito  do trabalho, da moda, da vida social, etc. (principalmente no etc.)  faz com que mulheres lindíssimas, no auge do esplendor físico e intelectual se julguem passadonas, incapazes de competir em pé de igualdade com teen agers,  superdotadas de beleza, juventude e graça.

 

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Há muito aprendi  que não se luta contra os moços, mas se alia a eles, quanto mais cedo  melhor. Atribuo a esta sincera admiração pela mocidade alheia  muito de meu saldo positivo como professor, como cronista, com pai e avô. Quando os muito jovens (e muito inexperientes)  percebem que há velhos que os admiram e os estimulam de coração aberto, passam a tratá-los melhor, aceitam algumas sugestões, alguns conselhos disfarçados, alguns modos de cortar caminhos tortuosos.

 

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A melhoria geral das condições de vida e saúde está fazendo rapidamente do Brasil um país de velhos, com um número assustador  de sexagenários, setuagenários e octogenários em pleno carpe diem, querendo aproveitar cada momento, recuperar o tempo perdido, gozar das delícias do corpo e da mente, sair por aí em viagens e aventuras antes inimagináveis. Sim, porque nós, madurinhos e madurões, temos insuspeitada capacidade de nos beneficiar do galopante progresso de agora, em mil diferentes facetas. Esse Estatuto do Idoso, então, barateia, facilita, estimula um mundo de atividades. Nosso ingresso no maravilhoso mundo da informática nos deixa  surpresos e entusiasmados. Mesmo quando se domina mal e mal a técnica mais rudimentar de lidar com o computador, não há homem ou mulher com mais de sessenta anos que não se renda a seus encantos, a suas possibilidades, ao mundo novo que se abre  à nossa curiosidade, ao nosso serviço. E o celular então?

 

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Em outras épocas, não tão remotas, pessoas respondiam até ao boa noite de Cid Moreira, ao fim do “Jornal Nacional”. A televisão era a companheira inseparável e insubstituível de milhões de velhos solitários. Sílvio Santos, com seus programas de auditório, era tido por uma senhora muito amiga de Marina como seu mais importante parente... O computador, a internet , o celular  tornam mais pessoais e mais completas as comunicações de solitários por necessidade ou vocação.

Ainda hoje,  num consultório médico, acompanhei o papo de duas mulheres sessentonas. Uma delas assim justificou a cara de sono que a outra notara. “É que fiquei até de madrugada jogando pôquer...”  A outra estranhou: “Jogando pôquer onde?” “Na internet, uai...”

 

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Com minha pouca vontade de viajar, de sair dos meus restritos confortos, lembro-me sempre da crônica de Carlos Drummond de Andrade em que ele confessa a sua nenhuma disposição de enfrentar filas, apertos, empurrões, para ver o que quer que seja. O bom para ele (e para mim) é que os eventos aconteçam quase secretamente na cidade, se possível em outro bairro, melhor ainda em  rua que nem  eu conheço. Não compartilho desse tipo de delírio ambulatório em que pessoas que ficam seis meses sem uma longa e atribulada viagem ao Laos ou a Machu Picchu se queixam da falta de aventura em suas vidas. Não chego ao cúmulo de imitar Xavier de Maistre ou Machado de Assis. O escritor francês escreveu alentado romance que tem por título Viagem ao redor de meu quarto. O nosso maior literato, carioca de nascimento, vida e morte, só saiu do Rio de Janeiro uma vez, ainda a conselho médico, porque estava quase cego. Foi a Nova Friburgo e lá, tirando tudo o que já estava organizado em sua mente,  ditou à inseparável Carolina os capítulos iniciais de Memórias póstumas de Brás Cubas, o primeiro de seus romances de fundo realista e psicológico.

 

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Recebo com ceticismo efusivas recordações de viagens alheias. Por vezes tenho mesmo a impressão de que algumas pessoas estão menos preocupadas em ver as coisas e muito mais  ligadas a fotografar/filmar  tudo, de modo a sentir o prazer real da viagem quando reveem aquilo em fotos e filmes examinados com cuidado na volta ao lar.

A esse propósito, penitencio-me de certo embaraço causado  a um amigo que, recém-tornado da Europa, contava-me  mil maravilhas a respeito do que vira e ouvira. Sua agência de viagem, o suprassumo; os hotéis, impecáveis; os passeios, inesquecíveis; os povos visitados, educadíssimos. Aí, mais para atalhar o assunto do que para levantar problemas, eu lhe indaguei: “Mas não aconteceu nada,  nada, nada de negativo em toda a viagem?”   Ele  fechou a cara e resumiu tudo numa frase: “ Você nem imagina como é desmoralizante viajar com passaporte brasileiro. É uma m**** ser considerado cidadão de terceira classe”. Nada mais lhe perguntei, nada mais ele me disse. Só vi o seu pomo de adão subir e descer na engolida de mágoa seca que deu. Sabe-se lá o que ele teve de suportar em longes terras, despido de sua carteira funcional que por aqui abre portas e janelas.

 

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A literatura de todos os tempos e de todas as línguas tem frases  díspares sobre velhos e velhice.  Lembro algumas:

Shakespeare:  Dizem que a velhice é a segunda infância.

Vauvenargues:  Os conselhos da velhice aclaram sem esquentar, como o sol do inverno.

Lichtenberg:  Não fosse a lembrança da mocidade, não se ressentiria a velhice. Toda a doença consiste em não se saber fazer mais o que se soube outrora. Pois o velho, em seu gênero, é decerto uma criatura tão perfeita como o moço na sua.

Goethe:  Não valeria a pena chegar aos setenta anos se toda a sabedoria do mundo fosse tolice perante Deus.

Trotski:  A velhice é a mais inesperada das coisas que acontecem a uma pessoa.

Mário Quintana:  Velhice é quando um dia as moças começam a nos tratar com respeito e os rapazes sem respeito nenhum.

Júlio Camargo:  Se a velhice existisse para todos, não haveria necessidade do inferno

Cícero:  Torna-te velho cedo, se quiseres ser velho por muito tempo.

La Rochefoucauld:  Os velhos malucos são mais malucos que os jovens.

Balzac:  Os anciães são bastante inclinados a dotar com suas mágoas o futuro dos moços.

Pedro Fraga:  Não estamos realmente velhos  enquanto nossos anos não começam a pesar nos outros.

Eno  Teodoro Wanke:   A velhice tem suas vantagens, claro.  Só nos resta agora descobrir  quais são elas.

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Ah,  LXXX é 80 em algarismos romanos.

 

19/02/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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