O livro do meu cunhado caçula

 

             Filho rapa-de-tacho de pais de oito, meu cunhado tem sabidas originalidades, desde a falta de relação entre seu nome e o do santo do dia em que nasceu. Tendo vindo ao mundo num 24 de junho, seria de rigor chamar-se João Batista. Não, ficou simplesmente José, para ojeriza do avô materno, que o chamou João Batista pela vida toda.

            Imaginoso desde sempre; crítico, irônico, deixou nome nos lugares por onde passou, na principal escola de sua cidade e na Faculdade de Direito da USP, notadamente. Em sua cidade foi daqueles alunos capazes de azucrinar professores com perguntas capciosas mas cabíveis. Nutriu por eles algumas admirações e muitas aversões, mantidas até hoje, apesar dos quarenta e tantos  anos decorridos e da morte de quase todos eles.

            Foi, contudo, na escola do Largo de São Francisco, nas atividades e badernas estudantis dentro e  fora de classe, que aperfeiçoou suas concepções e seus métodos  a respeito de tudo, desde o Direito em si até cultura, literatura, lutas de classes, marxismo-leninismo, revolução. Estava por em 1968, no começo da repressão dura. Foi invasor da Faculdade. Quando a polícia retomou o prédio, um oficial encontrou-o dormindo  na sala do diretor, friorentamente enrolado numa rala bandeira nacional. Cutucou-o de leve e lhe ordenou, gritado:

            -- Acorda, patriota!

            Depois, em voluntário exílio,  foram anos de andanças pela América Latina, de ponta a ponta, da Argentina ao México. Então voltou, aparentemente sossegou o facho, advogou com firmeza e afinco, formou uma bela família.

            Sempre deixava subentendido que estava escrevendo um livro, um livro de observações e comentários a respeito de tudo.

            Outro dia chegou aqui em casa como quem nada quisesse e acabou deixando calhamaço de umas quatrocentas páginas digitadas. Nada me pediu, mas estava implícito que era para eu ler e revisar tudo aquilo, sem pressa nem raiva.

            E assim, por mais de uma semana, fui lendo com afiado lápis de crítico o seu  Ponte Alta, uma espécie de romance cíclico, à semelhança de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Não pelo enredo ou pelo estilo, mas pela autonomia dos capítulos. Pode-se iniciar a leitura por muitos deles.

            Conversando uma noite destas em São Paulo com outra não menos crítica pessoa chegada ao escritor, fiquei sabendo, um tanto incrédulo, das aspirações dele quanto ao sucesso do livro:

            -- José me disse  que com seu romance de observação e análise de costumes, pretende fazer mais sucesso do que Paulo Coelho e toda a sua biblioteca de auto-ajuda. Eu du-vi-do, porque entendo tudo o que o Paulo escreve e quase nada do que José  escreve... Ele pode escrever mais certo, mas não melhor do que o Paulo...

            percebi que se tratava de tomada de posição das mais graves, capaz de dividir definitivamente o mundo ledor com invencível fosso: de um lado, o mago com suas reflexões epidérmicas e de fácil acesso ao leitor comum; de outro, meu cunhado e seu Ponte Alta, entendidos autor e livro por um classe privilegiada de apreciadores, apenas.

            Mas de que trata o meu cunhado caçula? Fundamentalmente de um auto-exame, de uma aprofundada tentativa de entender-se a si mesmo e ao mundo circundante,  em suas andanças físicas e ideológicas. Minha mulher, que tem pelo irmão temporão uns desvelos de mãe, disse-me que não sabe se chegaria a ler o livro dele, certamente desbocado, irreverente, algo licencioso como o próprio autor gosta de se mostrar, mesmo sem o ser. Ela me disse que não o leria, mas riu gostosamente escandalizada  dos relatos orais e desossados que lhe fiz de algumas passagens dele. Sei não, acho que quando o texto de meu cunhado ganhar o formato de livro, minha mulher acabará arriscando um olho e lendo-o quase às escondidas. Ovelhas  desgarradas têm sempre secretos admiradores.

            Nossa cidade está no livro, mas não ela. O mundo está no livro. Pessoas conhecidas povoam o livro, mas não elas. O amor está presente, assim como os pequenos dramas pessoais de muitos de nós, analisados com visões microscópicas. É um livro local e universal, se é que me entendem.

            Contra que é Ponte Alta? Contra a modernidade gratuita que acabou por ingressar em nossas vidas, principalmente através do computador, da Internet. Meu cunhado detesta tudo isso, acha um crime de lesa-língua empregarmos o vocabulário e as frases da informática. Pessoa lida nos clássicos, admirador de carteirinha de escritores como Machado, Euclides, Camilo, Guerra Junqueiro, não se conforma com a sensaboria das frases de hoje, com a falta de cultura e gosto revelada até por pessoas que se passariam por ilustradas.

            Ah, a louvação dos amigos destrambelhados, dos loucos mansos que andavam soltos por , dos amores que pareciam impossíveis e depois se revelaram e se concretizaram em plenitude e graça! Tudo está presente no livro ainda inédito.

            Ele não resiste aos acessos de eruditismo: em cada capítulo, há sempre lugar bastante amplo para suas digressões a respeito de tudo e de nada, desde linguagem até religião (ou irreligião), passando por sociologismo, literatismo, futebolismo, espiritismo...

            Pedro Alvarenga, por exemplo: desvairado, ensandecido, perdido na agitação da turba, caminhando, caminhando sempre, sem rumo, sem norte – é velho conhecido de minha geração. Verdade que com outro nome: M. Louco.

            Enzo Fornicatore (que sutileza de meu cunhado ao batizar personagens!) levou para Ponte Alta um alto e antigo ideal – a alquimia, a busca da pedra filosofal. Vale muito mais do que isso na mensagem do livro, porque no final... Não vou antecipar nada.

            Capítulos obscenos? Vários deles, como o que trata da instalação e funcionamento do lupanar da “professora” Ivete. Ouem que, numa linguagem velada, que lhe deve ter dado muito, muito trabalho de elaboração, meu cunhado relata a frustrada tentativa de cruzamento do vigoroso cachorro Capitão com a Princesa, a cadela que não estava no cio. Tudo ocorre numa praça principal, à luz plena do dia. Nem podem imaginar o que fez o dono do Capitão em prol do bem-estar físico do seu  animal de estimação.

            Os adventícios, atraídos pelo clima benévolo da cidade, acabaram estragando tudo, subvertendo os hábitos arraigados e introduzindo modismos inconcebíveis na outrora pacífica comunidade. Os adventícios mudaram de vez a cara provinciana de Ponte Alta: mexeram com tudo, inovaram com absurdas invencionices, como o campo de nudismo. A custo duas instituições das mais sólidas da cidade resistiram às investidas modernistas dos adventícios: o Bar do Tatu, democrático ponto de encontro da sociedade local, e a Confraria Lítero-Filosófica, fechadíssimo reduto constituído pelas quatro principais cabeças pensantes da urbs (eu emprego este termo latino porque meu cunhado também o fez, reiteradamente). Os dois veículos de comunicação social – o jornal semanário e a rádio de ondas médiasantes coerentes e unânimes em seus pontos de vista, porque pertencentes à mesma organização social, acabaram também tomados pela cizânia entre adventícios e conservadores e dividiram-se na defesa de opiniões tão antagônicas.

            Ao fim e ao cabo, o latente antagonismo entre velhos e novos acabou desbordando em luta aberta. Em meio à geral destruição, os velhos foram vencedores, não sem  terem destruído também o símbolo da eterna busca humana em prol do bem-estar, da riqueza, da superação da própria passagem do tempo – a casa de Enzo Fornicatore e toda a sua parafernália de pesquisa da pedra filosofal. Venceram os velhos, mas a cidade de Ponte Alta ficou irremediavelmente pobre.

            Sucesso de livraria? Não sei, ou melhor, sei que dificilmente. Mais importante do que tudo é que com o longo, elaborado e minucioso texto de seu romance, meu cunhado caçula exorcizou seus fantasmas e arejou tanto os porões quanto o sótão de seu pensamento.

18/12//2004
(emelauria@uol.com.br)

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