O homem certo no lugar certo

 

Felizmente, minhas previsões se concretizaram e o melhor candidato teve uma votação das mais consagradoras.

Pronto: sinto algum leitor do lado de lá fechando a cara e ameaçando até quebrar o computador ou picar em miudinhos as páginas do pobre Democrata.

Outro do lado de cá, então, nem se diga: prepara-se para a mais prazerosa das leituras, depois de imaginar uma lavada eleitoral de maioria absolutíssima, quase unânime.

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É como garante a sabedoria popular: o apressado come  quente ou cru, porque vou falar de outra espécie de  vitória, envolvendo menos gente, mas nem por isso menos justa ou menos comemorável.

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É que trinta e seis votantes (com uma inexplicável abstenção) elegeram para a cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras um belo poeta para suceder a Ivan Junqueira. Belo em termos, porque  por padrões estéticos vigentes em outros concursos, envolvendo traços fisionômicos, juventude e senso de proporções corporais, ele é de uma fealdade de doer e nem mesmo simpático de rosto  chega a ser.

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É isso aí. Chega de rodeios. Em votação de resultado tornado público no dia 9, o poeta e prosador  maranhense  José de Ribamar Ferreira (1930) foi justamente escolhido para ser imortal, embora como há muito tempo já tenha descoberto Coelho Neto, acadêmico no Brasil só é tido como imortal porque nem tem onde cair morto.

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José de Ribamar Ferreira, maranhense. Isso cheira a voto de cabresto. Vai ver que ele é parente ou afilhado de outro Ribamar, o Sarney, também maranhense, também chegado a um pseudônimo e também membro da ABL, a instituição que, seguindo os moldes de sua inspiradora francesa, vem aceitando, ao longo de seus quase cento e vinte anos de existência, políticos, médicos, engenheiros, jornalistas, gente do teatro. Até escritores.

Resumo de todo este suspense: esse tal José de Ribamar Ferreira é bem mais conhecido como Ferreira Gullar, no entendimento de muitos (com os quais concordo), o maior nome da literatura brasileira contemporânea.

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Ainda bem que ele aceitou o processo meio vexatório de sair candidato a uma vaga na Academia: tem de pedir voto a cada eleitor, tem de usar fardão verde-amarelo ao menos no dia da posse, tem de ir tomar de vez em quando o chazinho das cinco da tarde, às quintas-feiras e aproveitar para receber seu gordo jeton relativo a cada comparecimento. Se as coisas não mudaram, cada chegada por lá no dia e hora certos  rende a cada acadêmico que assine o livro de presenças uns dois mil reais. Nada mau, não é mesmo?

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Nunca se esqueça de que um vencedor de Prêmio Nobel abiscoita de uma só vez um milhão de dólares, hoje algo em torno de dois milhões e quatrocentos mil reais. Bem verdade que não se pode comparar o poder de fogo da Academia com o da Fundação Nobel, mantida pelo abençoado remorso do engenheiro sueco Alfred Nobel, inventor da dinamite, que tanto faz pelo progresso humano quanto mata ou mutila milhões de  vítimas de guerras, rebeliões, acidentes, atentados, barbeiragens.

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Sabe de onde vêm os recursos da Academia? De doações muito bem administradas.

Há pouco mais de cem anos, um livreiro português – Francisco Alves –  muito bem estabelecido no Rio de Janeiro, legou à entidade uma fortuna de dez mil contos de réis, bastando saber-se que era dinheiro suficiente para comprar MIL boas casas na capital do País. Os dirigentes da Academia deviam ser uns mãos-fechadas daqueles. Machado de Assis, o primeiro presidente (1897-1908), deu o bom exemplo e todos foram guardando, guardando. Hoje a Academia tem na Avenida Graça Aranha, centrão do Rio, uma suntuosa sede e ao lado um edifício de não sei quantos andares, dos quais ocupa uns dois, alugando o resto a preço de ouro.

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Bem diferente a situação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, com sede em sólido arranha-céu de sua propriedade, na Rua Benjamin Constant, a alguns passos da Praça da Sé. Tem amplo auditório, salas e mais salas e sempre alugou as acomodações que lhe garantiram a sobrevivência até há pouco tempo. Gradativamente, o centro velho de São Paulo  se degradou, esvaziou-se, o comércio fino se concentrou em shoppings e a  Benjamin Constant, entre tantas outras, se transformou em rua de passagem diurna e em  cemitério noturno só frequentado por marginais. Resultado: o IHGSP, de gloriosa tradição, o IHGSP em que Euclides da Cunha proferiu em 1897 a conferência “Climatologia dos sertões da Bahia”, onde inaugurou o uso do vocábulo  sertões no plural, o IHGSP encontra-se em estado de penúria, porque perdeu todos os seus inquilinos e não dispõe de outras rendas. Seus bens estão bloqueados e suas atividades de há muito suspensas. Sua Revista, de conceito internacional, não circula há já alguns anos.

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Quantas voltas que dei! Tudo por causa de uma boa eleição, de um bom candidato de primeira linha, como o é Ferreira Gullar. Mais conhecido como poeta do que como prosador, FG pode ser lido com prazer na Folha de S. Paulo todos os domingos, na “Ilustrada”. É atento observador das imensas contradições brasileiras, mas tem-se revelado menos pessimista quanto ao que o futuro reserva ao País. Seu principal livro? Sem dúvida, Poema sujo, escrito na amargura do exílio político em Buenos Aires. Em sua edição original, de 1976, espalha-se ininterrupto por noventa e três páginas, numa terrível prestação de contas que o poeta apresenta a si mesmo e a seu tempo. Ele parte do desejo de criar um texto radical e visceral de reconstituição de sua pobre infância em São Luís do Maranhão e que atravessasse, sem nenhuma lógica, toda a sua experiência de vida. Otto Maria Carpeaux, o erudito húngaro que melhor entendeu o Brasil e os brasileiros, escreveu que Poema sujo deveria chamar-se Poema nacional, “porque encarna todas  as experiências, vitórias, derrotas e esperanças do homem brasileiro”.

Em março de 1977, Ferreira Gullar volta ao Brasil, com a vaga esperança de que não seria preso pelos militares ainda no poder. No dia seguinte à sua chegada, é detido e levado a interrogatório durante setenta e duas horas ininterruptas. Por intercessão de amigos influentes, o regime deixa de vigiá-lo tão ostensivamente, e aos poucos sua vida no Rio de Janeiro ganha normalidade.

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Já que estou me permitindo tantas licenças nesta semana, concluo o preenchimento de meu espaço com a sem dúvida mais inocente das manifestações poéticas do concretista e hermético Ferreira Gullar – suas Trovas, que busco à página 512 da Poesia completa, teatro e prosa, edição Nova Aguilar, 2008:

 

FELICIDADE: É tão feliz essa graça/ que aos homens Deus ofertou,/ que só depois que ela passa/ se sabe que ela passou!

ALICE: Findo o amor, espero, Alice,/ que me possas perdoar / -  o que pensei mas não disse,/ - o que disse sem pensar!

SAUDADE: Saudade – uma vida cheia/ de outra vida que passou./ - Marcas de passos na areia/ que o tempo não apagou...

ESPERANÇA: Esperar...felicidade!/ Suplício de quem quer bem!/ Esperar é ter saudade/ de uma coisa que inda vem!

 

18/10/2014
emelauria@uol.com.br

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