Para entender o amor

  

O furto dos poemas

Se é coisa que não falta aqui em casa é lugar para livros. Não só na biblioteca com lotação completa, mas também  nos quartos, nas salas, nos banheiros.

No quarto que na nomenclatura antiga era o “das meninas” (hoje atarefadas mães e esposas, morando longe), uma estante com livros de origens ecléticas, não adquiridos nem ganhos por mim.

Um deles, Poesias Completas, obra póstuma de Sílvia Celeste de Campos, uma jovem de rara  sensibilidade poética que morreu muito cedo. Há sobre ela, no próprio volume, referências elogiosas assinadas por nomes famosos da cultura paulista dos anos quarenta: Agripino Grieco, Menotti Del Picchia, Mário Donato, Cleômenes de Campos, hoje perfeitamente esquecidos.

Pois não é que, numa das poucas vezes em que Marina nestes anos todos o apanhou para releitura de um poema qualquer, notou que o livrinho minguara a olhos vistos? Alguém, quem sabe vivendo os mesmos dramas de amores platônicos e adolescentes de Sílvia, não contente em ler aquelas coisas bonitas, arrancava as páginas que mais lhe agradavam.

Pensou-se que fosse ação antiga, até que um dia a mocinha que trabalhava aqui em casa como doméstica foi apanhada em flagrante delito – subtraindo mais uma página do livro de poemas sentimentais.

Marina, ela mesma uma devoradora de livros desde muito jovem, tratou a questão com gentileza e tato. Chamou a mocinha Sueli e a interrogou sobre o arrancamento das páginas. Nem houve tentativa de negar a evidência:

- A senhora me desculpe, dona Marina, mas eu chorei muito lendo aquelas coisas. Entendi todo o sofrimento da tal Sílvia e queria muito reler sempre aquelas belezas com que ela dizia o que eu mesma estava vivendo e não sabia dizer..

- E por que não me  pediu emprestado o livro?

- Eu não teria coragem para isso... Nem sabia de quem ele era...

- Então vamos fazer o seguinte: você tem guardadas todas as folhas que arrancou?

-  Claro, dona Marina, elas estão guardadinhas num lugar fora do alcance de qualquer outra pessoa, lá em casa...

-   Ótimo.  Você as traga de volta que eu darei um jeito.

Sueli devolveu as páginas, embrulhadas em papel de seda e amarradas com uma fitinha cor-de-rosa.

- Estão aí todas as páginas arrancadas?

- Estão sim.

- Há mais alguma que você gostaria de ler de novo?

- Não sei. Não cheguei a ler tudo...

- Você leve o livro para sua casa e assinale as poesias que você mais gostou.

Sueli levou o desfalcado livrinho e dali a uns dias o devolveu, com algumas páginas marcadas bem de leve com um x a lápis.

De posse das preferências poéticas da sonhadora secretária do lar, Marina mandou tirar xerox de todas, deu-as de presente à leitora oculta  e depois remontou o livro na íntegra.

Só um dia destes é que ela me contou essa historinha e me mostrou a dedicatória que lhe fizera há quase cinquenta e sete anos Yedda Cunha, nossa colega de Escola Normal:

 

À Marina, uma recordação de quem deixou o coração inteirinho

em São José do Rio Pardo e um grande pedaço dele para você.

Yedda.

São José do Rio Pardo, 20 de dezembro de 1949

(Dia da nossa formatura)

 

Sueli acabou casando, nem sei se com o homem que a fazia sonhar e entender poesia. Talvez ele mesmo nunca tivesse lido uma. De vez em quando ela aparece por aqui, mais gorda, mais cheia de filhos, mais cansada da lida da vida. Teria ainda  guardados os poemas da malograda Sílvia Celeste de Campos?

 

Vitória do amor

Não tive boa impressão dela na primeira vez que fui procurado no Fórum como seu advogado dativo. Alta, bem-feita de corpo, cabelos compridos, mas os dentes – uma lástima. No rosto envelhecido, uns olhos sofredores, altivos, como se tivesse certeza de sua razão na contenda judicial ou fora dela.

Para se ter ideia de quanto tempo faz, basta dizer que o Fórum funcionava no prédio hoje restaurado para a Biblioteca Municipal.

O caso era simples e corriqueiro: ela estava ali com a firme vontade de separar-se do marido, desde que a Justiça garantisse o pagamento de pensão alimentícia para seus três filhos. “Não suporto mais ver o folgado do meu marido trabalhando pouco, divertindo-se muito e quase nada pondo em casa”...

O marido me deixou a imagem de sujeito espantado com essas acusações tão diretas e contundentes, meio perdido naquele processo todo em que seus defeitos eram expostos tão cruamente, com exagero, quem sabe. Demonstrava gostar muito dela e das crianças. Pareceu-me um tipo dócil, movido por uma certeza emocional que complica a vida de qualquer homem: amava muito mais do que era amado.

Conversei longamente com os dois. Ele, disposto a acabar com aquela contenda toda, fazia as promessas de tudo ser diferente dali em diante.. Ela, cansada de suas irresponsabilidades, de suas ausências.

A certa hora da longa conversa, comprometi-me de modo incomum com aquele casal:

- Olhem, a vida de  casados não é mesmo fácil, mas vale a pena tentar. Se vocês se reconciliarem, prometo-lhes que minha mulher e eu seremos padrinhos de um filho de vocês...

- Verdade, doutor? Verdade?  (Era o marido, ansioso  por encerrar aquela briga toda.)

-  Verdade, desde que vocês dois se entendam pra valer, não por um mês ou dois...

Meses mais tarde, eis minha mulher e eu batizando o mais novinho dos três, um moreninho risonho e bonachão, já com seus três ou quatro anos.

Para refazer a vida, o casal se mudou daqui da cidade e nós perdemos inteiramente o contato com eles.

Pois não é que um dia destes nos bate à porta  um homem quarentão, acompanhado da mulher e de dois filhos?

- O senhor não me reconhece?

- Eu sou o Rosoel. Sim, Rosoel. O senhor e dona Marina me batizaram quando  eu tinha uns três anos.

-  Hã, Rosoel... Rosoel...  (Aquele nome nada me dizia.)

-  Olhe, foi por causa do senhor que meu pai e minha mãe voltaram a viver juntos, lembra-se? O senhor se ofereceu para padrinho...

Aí eu me lembrei daquele caso antiquíssimo, desanuviei a fisionomia e o tom de voz.

- E seus pais como vão?

- Os dois já morreram. Meu pai, de morte natural. Minha mãe, atropelada numa avenida em São Paulo... Ela era um pouco surda e muito distraída.

Mas Rosoel não queria falar de coisas tristes e logo retomou o curso da conversa.

- Eu vim aqui para mostrar ao senhor e a dona Marina que foi bom ter sido criado por mãe e pai, junto com os irmãos. Se não tivesse sido a sua boa vontade  e insistência, nem sei o que teria sido de nós. Seria mãe para um lado, pai para outro,  filhos desgarrados, um transtorno de vida. Minha mulher e meus filhos precisavam ter a certeza de que o que eu lhes contava não era invenção...

Senti-me até comovido com essas palavras tão sensatas e tão reconhecidas.

Marina e eu os tratamos o melhor que pudemos. Lancharam com a gente, sentados todos à sombra de nossa jabuticabeira. Falaram bastante, ouviram muito e saíram felizes aqui de casa. À despedida, Rosoel nos pediu a bênção e nos beijou as mãos.                

Será que voltarão um dia? Não sei. Só sei que Rosoel precisava resgatar de viva voz uma antiga  dívida de gratidão  e dar um exemplo construtivo a seus filhos. O que ele talvez não tenha percebido é que minha mulher e eu é que passamos a ter motivos de lhe ser muito agradecidos.

(Texto de 2006)

18/09/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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