A UMA SENHORA DA MINHA AMIZADE
<<Temo
que
não possa prestar-lhe o
favor
pedido.
Talvez a Sr.ª
não compreenda.
Eu
bem
que gostaria de “escrever
bonito
sobre o
acontecimento
raro”,
como diz a Sr.ª
em
sua
bela
missiva.
Cinqüenta
anos de
casamento dão
para
entender
que a Sr.ª
mesma “
não está acreditando”.
Além do
mais, a Sr.ª
quer
que
seu
marido fique
alegre,
ele
que esteve
um
mês tratando-se
em
São Paulo.
Na
verdade,
bodas de
ouro
não constituem
um
acontecimento
jornalístico
notável,
nos
bicudos
dias
que correm.
Quando
muito, a
notícia sairia
assim, espremida num
canto da 2.ª
página:
“ No
dia
tal, o
casal X e Y comemorou cinqüenta
anos de
vida
em
comum.
Seus
dez
filhos (e apareceria o
nome de
todos
em
ordem decrescente) festejaram o
acontecimento na
intimidade e mandaram
celebrar
missa
em
ação de
graças na
igreja Z”.
Só
isso.
Nem “os
parabéns desta
folha”.
Conhecendo a Sr.ª
como conheço, sei
que
isso
não a satisfaria,
porque
não se deu a
devida
importância a
efeméride
tão
grata.
Mas
jornal
hoje
em
dia,
mesmo
um
semanário de
interior,
procura
usar
linguagem
fria e
objetiva, preocupando-se
com o
quem, o
que, o
como e o
por
que da
notícia. Se
chocante,
melhor. O
mais
não
conta,
menos
ainda
um
motivo de
júbilo.
Então
aquelas
frases
tão
bem torneadas
que a Sr.ª constrói
não têm
cabimento,
ou
suas
confissões de
amor à
vida, às
pessoas, a
sua
fé
robusta –
tudo está
banido de nossas
folhas. Deve
ser
influência
americana,
mas o
fato é
que se
eu transcrevesse algumas outras
partes de
sua
bela
missiva,
poucos entenderiam e
muitos veriam
até uma
ponta de
inutilidade.
São os
tempos,
minha
senhora.
Jornal,
hoje, tem de
ser
duro e
seco,
tal
como o
coração de
homens
vitoriosos.
Nenhum derramamento,
nenhum
elogio (mesmo
que merecido), nenhuma
expressão de
afeto
ou de
calor
humano.
Jornal tem
leitores,
não
amigos.
Por
isso,
não posso
falar de
seu
marido, do
colégio
onde estudou;
muito
menos a
respeito de
onde a Sr.ª esteve
interna.
Também
não compete ao
noticiário
lembrar
que
seu
marido criou
quatro
irmãos e
que foi o
tutor deles.
Nem
que educou
mais
três
filhos de
empregados.
Muito
menos é
jornalístico
tocar nas
tradições
familiares dos
cônjuges (“coisa
que
diante de
Deus
nada significa,
mas é
apenas
para
alegria dos
filhos e
netos”).
Como
poderia
haver
um
trecho
que dissesse: “criado
na
varanda dos coronéis, o
casal celebrante é
feliz e
hospitaleiro”,
como a Sr.ª afirma e
eu acredito?
Se
eu escrevesse
que moram num
sítio
em
frente a uma
ilha, “onde vivem
felizes e
alegres num
verdadeiro
paraíso,
depois de haverem
criado
seus
dez
filhos,
sempre
cercados de amiguinhos
sob o
olhar de Jesus”,
para
começar,
muita
gente acharia
que a
frase foi extraída de
um
conto de
carochinha, e
não de uma
carta
escrita
por uma
sensível
mulher
que
quer
principalmente
alegrar o
marido, no
dia dos cinqüenta
anos de
casados.
Como
vê,
meu
espaço
chega ao
fim e
eu
não faço o
favor
que, “não
por
vanglória”, a Sr.ª
me pede.
Mostre a
seu
marido o
que está
aqui
escrito (quase
tudo
pela
mão da Sr.ª) e releve minha
impossibilidade de atendê-la ao
seu
inteiro
contento.
Ele,
homem
vivido, compreenderá a
contingência dos
dias de
hoje,
mas ficará reforçada nele a
agradável
certeza de
que a Sr.ª, neste
meio
século, “viveu
sob o
olhar de Jesus, cumprindo à
risca o
dever de
esposa,
filha e
mãe, claustrada
em
um
lar
longe da
cidade, à
sombra das
árvores e das
flores, criando
dez
filhos”. >>
Até
aqui, o
texto
que saiu há
mais de vinte
anos na
coluna
Calidoscópio,
que mantive na “Gazeta
do
Rio
Pardo”. Transcrevi-o no
livro
Tempo &
Memória,
que é de 1986.
Gosto dele, de
seu
tom
polido e
algo desencantado
com a
falta de
sensibilidade
que
já se fazia
notar
até
nos
semanários de
pequenas
cidades
como a
nossa. E,
principalmente,
pela
lição de
amor e
vida
que a
remetente
me deu e
que
vale
ainda
agora. Trago-o de
volta
não
por
falta de
assunto (é o
que
mais
sobra
hoje),
mas
porque
ele
me causou
inesperado
dissabor, cujas
causas procuro
não
repetir no
que escrevo:
Logo
depois de a
crônica
ter
saído na “Gazeta”,
uma das filhas do
casal das
bodas de
ouro
me parou na
rua e
me disse
cobras e
lagartos
porque na
leitura muito
pessoal
que fizera, havia
achado
que
eu
tinha tido
em
mira
menosprezar
sua
mãe,
ridicularizar
seu
modo de
pensar, de
sentir, de
escrever.
Por
mais
que
eu
lhe dissesse o
contrário,
não houve
como convencê-la, a
ponto de
nunca
mais
me
dirigir a
palavra.
Procurei
saber a
opinião dos
demais envolvidos e
só recebi agradecimentos
por
haver, de
modo
original,
satisfeito ao
desejo da
esposa/
mãe/avó e publicado
quase na
íntegra o
que
ela
me escrevera.
E
assim é.
Certos
assuntos provocam desencontradas
reações
nos
leitores,
como foi o
caso do
recente
comentário
meu
sobre
um
filme
que contava a
difícil acomodação de
um
velho
que se aposentou e
logo
depois perdeu a
mulher e o
afeto da
filha.
O
assunto mexeu
com
muitos. Recebi
telefonemas e
e-mails.
Pessoas vieram
fazer
comentários
nos
mais variados
lugares.
Enquanto uma
senhora revelava
que assistira ao
filme e lera o
artigo
com
muita
saudade de
seu falecido
marido
que, na
opinião dela,
tinha
muita
coisa da
personagem interpretada
tão
bem
por Jack Nicholson,
um
senhor, na
faixa
etária do
tal Sr. Schmidt, ficou interessadíssimo
em
achar o
vídeo
ou o DVD numa
locadora
qualquer. “E
além do
mais – comentava
ele
com
certa
razão –, o Jack Nicholson está
muito parecido
comigo...”
Fiquei sabendo
também
que uma leitora estava “revoltada”
comigo,
com
meu
jeito
cruel de
tratar
determinados
assuntos!
Ela gostaria
até
que
alguém escrevesse criticando o
meu
escrito, defendendo
outro
modo de
apreciar as
coisas.
Ora,
exatamente o
que procurei
evitar
em
todo o
texto foi a
emissão de
opiniões
que
não se baseassem no
que vi na
tela.
Isso
quer
dizer,
em
resumo,
que fui
apenas o
intérprete do
que aquela
personagem passou de
seus
sentimentos
através de
palavras,
gestos e
julgamentos. No
caso, traduzi
com
frases
minhas o
que ia na
cabeça do
artista
que,
por
sua
vez, obedecia às
orientações do
diretor do
filme,
que
também construiu
tudo a
partir de
um
script
baseado num
romance...
Longínqua,
portanto, a
origem das
interpretações
sobre
situações dolorosas
como o
fim do
amor, as desilusões, a
perda da auto-estima, a
solidão, a velhice... E,
primordialmente, o
estrago
que a
falta de
amparo
em
valores
espirituais faz na
vida das
pessoas submetidas a profundas mudanças no
seu
dia-a-dia.
Não inventei
nada.
O
mundo
anda
cheio de Srs. Schmidts, parece.
18/09/2004
(emelauria@uol.com.br)
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