Ou isto ou aquilo
(Texto remexido)

 

O título é para lembrar Cecília Meireles, a grande voz da poesia brasileira, que fazia questão de ser chamada poeta, e não poetisa: este vocábulo lhe dava a impressão de diletantismo, de amadorismo descompromissado. Poesia, para ela, era coisa séria, seriíssima.

Ou isto ou aquilo é feito de versos tão singelos que uma criança de oito anos os lê e entende. Repete a leitura aos doze e os compreende melhor. Aos vinte, melhor ainda. Aos oitenta, continuam sérios e úteis. Lá está escrito: "Ou se tem chuva e não se tem sol / ou se tem sol e não se tem chuva!". Simples, não? "Ou guardo o dinheiro e não compro o doce / ou compro o doce e não guardo o dinheiro!". Há uma lição permanente de vida nesses dilemas: com a passagem dos anos as alternativas se refinam e as aditivas causam mais estragos. Suponho: "Ou caso logo e não aproveito a mocidade / ou caso velho e não me acostumo à nova vida!". Vou mais longe: "Ou fico por aqui e não consigo trabalho decente / ou emigro para os Estados Unidos e lavo cachorros, pias e privadas!"

 

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Mesmo fugindo aos esquemas seguidos por Cecília Meireles, posso armar infinitos dilemas, de reconhecida complexidade: "Finjo que não vejo as injustiças (falcatruas, lambanças, malfeitos) que vejo / ou me convenço de que não há crime em tudo isso que estou vendo e fico de consciência anestesiada".

Pior do que escolher mal é não escolher, dizem os mais experimentados na vida, que chegam a dizer que só nos arrependemos daquilo que não fizemos – uma assertiva de fácil contestação. É bem verdade que "antes uma raspadela no carro ao lado do que uma abalroada no da frente". Ou ainda: "Melhor correr o risco de passar por tolo do que fazer o mal a outrem" – e por aí a fora, porque na vida temos a todo o instante bifurcações e dilemas, quando não trifurcações e trilemas.

Veja você quantos bons propósitos à disposição de alguém: deixar de fumar, emagrecer, deixar de beber, caminhar todos os dias, controlar a pressão arterial, evitar aborrecimentos, contar até dez antes de explodir, jogar o jogo do contente.

 

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Não poucos sabem por experiência própria que deixar de fumar é tarefa para super-homens e supermulheres. Dizem que mais difícil de sair da maconha, da cocaína. Só Mark Twain, o pai do moleque Tom Sawyer, não pensava assim: "Para mim, deixar de fumar é coisa à toa. Eu já deixei umas dez vezes!"

 

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Causa espanto saber que a lei estadual proibitiva de fumar em quase todos os lugares decentes da vida em sociedade pegou mesmo. Sim, espanto porque no Brasil há leis que não pegam (como a da ficha limpa) e acabam caindo no esquecimento. Essa do fumo, não. Pessoas apanhadas fumando em locais impróprios são cada vez em menor número, porque a transgressão tem mesmo a unânime reprovação social. Daí o balconista que de duas em duas ou de três em três horas sai às escondidas e vai dar suas tristes tragadas num localzinho menos público, ou a jovem senhora que começou a fumar só de brincadeirinha e hoje, escrava da necessidade, sai da mesa das refeições e se refugia momentaneamente no banheiro, no quintal.

 

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Ora, se você deixa de fumar (de verdade), não pode sair da rotina: emoções fortes, jamais; nada de acompanhar jogos de futebol de seu time do coração (de seleções olímpicas brasileiras, nem pensar!) , de ir a festinhas de fim de ano; nem mesmo a velórios. Depois de carnaval e réveillon, velório é a situação em que mais pessoas voltam a fumar, ou por causa do sofrimento ou por causa do tédio.

 

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Um ano todo de privações tabagísticas e quantos quilos você engordou? Quantos centímetros mandou abrir na cintura de suas calças ou quantos buracos novos no cinto? E as camisas perdidas? Até os pés engordam, de forma que sapatos de bico fino apertam demais. (Não é o sapato que não entra no pé, é o pé que não entra no sapato.)

Deixando de fumar e engordando, você receberá dezenas de conselhos, principalmente sobre a necessidade de caminhar. E vêm as explicações científicas: não se trata de correr sem preparo adequado, pois seu insensato coração pode pifar no primeiro quilômetro do percurso. Trata-se de caminhar com ritmo; nada daquele passinho burguês de quem está fazendo a digestão; muito menos aqueles vagares de quem aprecia vitrines de shopping. O ideal é a estranha marcha atlética, que dá margem a penosas interpretações.

 

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Aí você toma gosto pelas caminhadas, que passam a integrar seu cotidiano. Então o calcanhar e/ou a sola do pé e/ou a panturrilha doem. Você apela para umas massagens que às vezes resolvem. Se não, vai ao traumatologista, que pede radiografia dos pés e descobre que você tem aquilo que um amigo meu catalogou de "doença de galo velho", isto é, esporão. E esporão dizem que não tem cura; é você que precisa acostumar-se às crises, agravadas com o frio. Claro, você pode ter a sorte de esfarelar o seu esporão por meio da litotripsia – aquele mesmíssimo jeito de pulverizar cálculos renais.

 

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Além do esporão, há o risco da ocorrência de pressão alta. Andar ajuda a baixá-la, diminui as taxas de triglicérides e de colesterol (o ruim), mas andar muito e/ou em horários impróprios – quase todas as horas do dia o são – pode levar ao câncer de pele, a menos que você caminhe pela sombra, ou à noite, ou só quando chove, ou use filtro solar com fator oitenta, ou more em Londres.

E assim se vão adicionando alternativas: ou você se candidata a morrer do pulmão, ou do coração, ou de câncer, ou você fica sentadinho em casa lendo, ou cochilando em frente à televisão, ou vendo a banda passar.

 

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Há quem decida assim: andar sempre, mesmo com dor no calcanhar. Quando o esporão espora mais, socorre-se de anti-inflamatórios ou vai ao traumatologista amigo que lhe infiltra umas substâncias milagrosas a curto prazo. Não abusa do sol quente, mas caminha sem protetor solar, confiante na boa qualidade de melanina que os povos mediterrâneos têm de sobra. O clínico amigo o ajuda a domar a hipertensão (a custo de verter água de hora em hora) e a manter a obesidade num nível próximo da decência ao módico preço de cortar cervejas, refrigerantes, doces, massas, embutidos e a própria alegria de viver mais ou menos bem. O urologista amigo lhe pode conceder liberdade vigiada, renovável de quatro em quatro meses, alertando-o sempre do risco de ver aumentar a próstata; o otorrino amigo lhe dá boas recomendações sobre as castigadas cordas vocais. Nada como ter bons amigos nas funções certas.

De qualquer modo, o cerco vai se fechando; entende-se melhor que nas opções tomadas já não há autonomia, mas apenas adesão ao que parece menos mau, coisa assim como "ou se calça a luva ou se põe o anel", outro verso da mesma Cecília Meireles.

 

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As prescrições médicas, por mais respeitáveis, têm um caráter maniqueísta: cada uma delas privilegia a visão de seu emissor e representa uma forma de invasão de nossos corpos e de solapamento de nossa vontade autônoma. No mais das vezes, falta-lhes a visão holística do paciente – coisa que parece muito antiga, à vista de tanta especialização que faz haver experts do lado esquerdo baixo do coração!

A partir da idade (variável) em que já não se indaga COMO VAI?, mas ONDE DÓI?—, o humano corpo vive no estado de sítio representado pelas restrições, pelas dietas, pelas próteses, pelas sondas, pelos implantes, pelos marca-passos...

 

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Guimarães Rosa coloca na boca de Riobaldo em Grande sertão: veredas esta concentrada pílula de sabedoria e prudência: Viver é muito perigoso. Ele só a põe na boca de Riobaldo porque o medo nela embutido é dele mesmo, na vida real médico, médico mais de alma do que de corpo. Rosa era médico de sua alma, conhecendo seus limites: sabia como lhe faria mal a emoção de uma posse solene e concorrida na Academia Brasileira de Letras. Adiou tudo enquanto pôde, resistiu a tantas formas de coerção, mas acabou cumprindo o ritual. Morreu do coração, dias depois. Seu dilema era este, à maneira de Cecília: "Ou assumir e morrer logo / ou não assumir e viver em débito público".

 

18/08/2012
emelauria@uol.com.br)

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