De A a X


O braço sereno do rio

 

O nome da colecionadora de frases é quatrocentonamente extenso: Lúcia Leite Ribeiro Prado Lopes, que se apresenta apenas como “leitora”.

O título da obra – Machado de A a X, Editora 34, São Paulo, 2001 – abriga um trocadilho de gosto quando menos duvidoso, lembrando alguém de língua presa pronunciando Machado de Assis.

Não há como não trazer à tona dois professores de priscas eras que tinham o mesmo defeito de prolação. Um deles, médico, lecionava Francês e foi justamente apelidado Xexê. O outro, também médico, lecionava História Natural e dizia para a classe do Xientífico, enquanto pulava páginas e páginas do compêndio de Waldemiro Potsch, do Pedro II: “Ixo é muito fáxil, não prexijo expricar”.

Como os conceitos arrolados no livro de Lúcia Lopes começam com abastança e terminam com xadrez, justifica-se a denominação, que a Autora deve ter considerado um achado poético.

Ela sabe não ter sido a pioneira na agradável tarefa de garimpar boas frases nos muitos livros de nosso maior escritor. Selecionou mil delas, como poderia ter alcançado o dobro, o triplo, porque Machado é antes um cultor de ideias e não um arranjador de enredos mais ou menos complicados.

O iniciador desse tipo de estudo seccionado da obra machadiana foi Francisco Pati, há mais de cinquenta anos, através de um livro muito útil, o Dicionário de Machado de Assis. Tenho um exemplar de 1972, editado pela Comissão Estadual de Literatura, da Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo do Estado de São Paulo. Aqui me pergunto como os órgãos  governamentais paulistas daqueles tempos arranjavam o dinheiro necessário à publicação e distribuição gratuita de obras de tanto valor. Ou já então se pensava em malversação do dinheiro público quando se incentivava a leitura e o estudo? Vejo aqui na minha biblioteca não um ou dois livros, mas dezenas deles que me chegaram às mãos de graça só porque eu lecionava em escola pública estadual... Belos e idos tempos.

O Dicionário de Pati não é um opúsculo qualquer, mas um belo volume de 343 páginas, organizando-se a partir de outro critério: personagens dos contos e depois dos romances são colocadas em ordem alfabética , de A a Z, e têm expostas suas características morais e psicológicas. De Abel a Zósimo Ipsilante.

Francisco Pati, belo nome da cultura paulista, já esteve aqui em São José do Rio Pardo (quando eu ainda usava calças curtas), pronunciando palestra numa Semana Euclidiana. Ou estou muito em engano ou ele era palmeirense roxo, tendo ocupado cargos importantes no antigo Palestra Itália.

Como proporia Machado, que abominava enrolações, voltemos ao livro da Sra. Lúcia, que me dá oportunidade destas superficiais observações alinhavadas numa  tarde perfeita de julho, em clima de alheias férias.

Algumas frases machadianas já se incorporaram ao patrimônio cultural dos seus muitos leitores, que as citam  de memória, por vezes sem o rigor da forma nem a necessidade de aspas. Nenhuma delas mais lembrada do que aquela de Memórias póstumas de Brás Cubas,  modelo de concisão e de ironia: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”; ou esta outra do mesmo livro, exemplo de ceticismo conformista: “Matamos o tempo; o tempo nos enterra”.

A Autora contou com a simpatia e apoio do mais importante bibliófilo brasileiro, José Mindlin, que além de assinar a nota da orelha do volume, ainda lhe colocou à disposição a Biblioteca Guita e José Mindlin, a maior entre as particulares do Brasil, hoje felizmente integrando por doação póstuma o acervo da Universidade de São Paulo.

São reproduzidas ao longo do livro as litografias do notável desenhista José Agostini (1843-1910), originalmente estampadas na Revista Ilustrada, cujos exemplares (verdadeiras raridades) , pertencentes à biblioteca da Fazenda Maria, de São Carlos, foram cedidos à  Autora por Olívia Pereira Leite Malta Campos.

E agora vamos à parte principal deste artigo, ou seja, a transcrição de algumas das frases machadianas reunidas no livro aqui tratado. Antes, porém, cabe lembrar que ganhei de minha finada mulher o livro em questão, o que em absoluto não quer dizer que ela concordasse com tudo o que aqui seleciono. Nem eu. É que muitas vezes sacrificamos coisas importantíssimas por amor a uma boa tirada. Dizem ser este  dos maiores defeitos de Fernando Henrique Cardoso e de outras inteligências privilegiadas. Daqui em diante, só Machado de Assis:

- Não disse mal de ninguém por falta de tempo, não de matéria.

- Há coisas que, se não se entendem logo, nunca mais se entendem.

- Calino tinha a virtude de falar claro, a sua tolice era transparente.

- O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

- A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana.

- A vida, mormente nos velhos, é um ofício cansativo.

- Não se sentia feliz nem infeliz, mas nesse estádio médio, que é a condição vulgar da natureza humana.

- A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente.

- Há um bom costume na Índia, que eu quisera ver adotado no resto do mundo, ou pelo menos aqui no Rio de Janeiro. A visita não é que se despede; é o dono da casa que a manda embora.

- O mundo era estreito para Alexandre (Magno); um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.

- Dona Maria Soares dava a sensação de uma pessoa que escolhera a viuvez por ofício e comodidade.

- Não só de fé vive o homem, mas também de pão e seus compostos e similares.

- Infelizmente a vontade é maior do que as esperanças, infinitamente maiores do que a  possibilidade.

- Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes ou, pelo menos, deleitosas.

- Mas o que não é banal debaixo do sol, desde o amor até o empréstimo?

- O melhor dos bens é o que se não possui.

- O prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiário.

- As boas ações que praticamos não passam de nossa rua, mas as más ações que nos atribuem vão de um extremo a outro da nossa cidade.

- Morreu sem dor, ou, se teve alguma, foi acaso brevíssima, como um relâmpago que deixa a escuridão mais escura.

- Em geral uma mulher sabe que é amada por um homem, antes mesmo que ele o perceba.

- Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.

Nada há pior que gente vadia, - ou aposentada, que é a mesma coisa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste.

 

18/07/2015
emelauria@uol.com.br

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