DE LER E DE ESCREVER

 
A ponte e uma jovem paineira
morta afogada num represamento

 

Era uma reunião de velhotes, todos daquele tempo em que no grupo escolar havia cadernos de caligrafia e os alunos eram obrigados a saber de cor todas as tabuadas, até a do nove. Além dos afluentes do Amazonas e as capitais de países do mundo todo.

Mas o tema geral daquele bate-papo era bem outro, resumível nas maravilhas da informática. Um lembrava como a adesão ao computador mudara a sua vida toda; outro falava bem da internet; este se vangloriava de como sabia usar com prazer e proveito as novidades do Google; aquele se admirava de como seus netinhos lidavam com sabedoria e coragem com aquela parafernália toda, para ele cheia de indecifráveis segredos.

Não sei quem mudou perigosamente o tom geral da conversa, lançando ao ar uma pergunta que causou surpresa e um silêncio de cumplicidade e culpa:

- Como é que até para nós, pessoas maduras e profissionalmente comprometidas com uma causa cultural em crise, está difícil, cada vez mais, dominar a tentação de nos postarmos frente a um computador ou assemelhado, ao invés de lermos um livro, lermos em profundidade, como fazíamos  constantemente  há trinta ou mais anos?

- É muito duro resistir aos acenos da modernidade, resumiu alguém.

Outro velhote, com certeza apreciador de Ulisses, o marido de Penélope, lembrou  que por vezes nos deveríamos amarrar à cadeira de leitura  e vedar os ouvidos com cera, para não sermos sempre e tão facilmente arrastados pelo canto das novas sereias, as  tentações cibernéticas.

Fiquei então pensando cá comigo: se as gerações de madurões como a nossa sentem tamanha fascinação pelas novidades tecnológicas que conhecemos apenas de raspão, como ficarão os muito jovens, as crianças de hoje, os que não tiveram oportunidade de criar o que o psicólogo americano Ogden chamou de vida interior, consequência da boa leitura, tão diferente do que veem no audiovisual, nas histórias em quadrinhos?

*

Se o ato de ler se torna a cada dia menos espontâneo e mais difícil, o que se dizer então do ato de escrever?

Dependesse dos incentivos de agora e a escrita se tornaria atividade obsoleta em pouco tempo. Um crescente número de pessoas de bom nível cultural jamais escreveu uma página sequer e provavelmente não o fará ao longo de toda a vida. Acostumaram-se às facilidades e ao descompromisso formal do WhatsApp, um verdadeiro vale-tudo de símbolos, abreviações, invenções, ao gosto do freguês.

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Para escritos mais sérios, menos informais e com algum respeito à tradição redacional histórica, seria de se pensar no retorno àquela situação extrema, descrita com tanta finura pelo notável escritor italiano Luigi Pirandello, o impiedoso criador de um belíssimo livro – O falecido Matias Pascal:

Numa aldeia  de tantos séculos passados, o mais ilustrado dos habitantes (ou o menos inculto, suponho) desempenhava com proficiência  a inesgotável função de agente sentimental ou estimulador de casamentos. Chega a ele um daqueles camponeses saudáveis, fogosos  e lhe diz:

- Don Giuseppe, prego, escreva aí para mim uma carta de amor a Concetta.

O agente se põe logo a agir, passando para o papel, quem sabe em outros tempos colhidas em algum secretário do amante exemplar, belas frases em louvor a Concetta. Obtida a indispensável autorização do enamorado (Gioacchino, quem sabe) que escuta embevecido aqueles sons transformados em letras por interposta mão, lá vai o profissional do afeto dizer à bela e fornida casadoura:

- Signorina, tenho comigo uma carta de parte do jovem Gioacchino.

- Ah, o senhor quer ter a bondade de ler para mim?

Então o agente da alheia felicidade lê aquelas frases que ele mesmo escrevera.

- E agora, signorina,  que resposta dou a ele?

- Per piacere, Don Giuseppe, escreva aí que...

Ali mesmo, caneta e tinteiro portáteis, o precursor do hoje superado e-mail redige adequada resposta. Cuidados gramaticais e estilísticos, apenas relativos, porque ao fim e ao cabo, a ele, Don Giuseppe, apenas a ele, caberá tomar conhecimento daquela epistolografia toda. Ele, emissor, receptor, senhor do código, dono do assunto, canal de comunicação. Nem Jakobson, o pai das funções da linguagem, ousaria imaginar situação assim concentrada.

Muito provavelmente, meses depois Concetta e Gioacchino acertam os ponteiros da vida em comum, nem convidam para a festa Don Giuseppe,  um intelectual a serviço da coesão familiar.

Exageros à parte, é de se considerar que hoje o ler e o escrever já nem integram as pretensões pessoais e profissionais  de um crescente número de indivíduos, alguns até portadores de diplomas universitários. Para suas necessidades mais prementes, o recurso será valerem-se de escribas, aliás profissão muito antiga e reputada. Eu mesmo, neste particular e tomando emprestada uma conclusão do velho Machado, tenho servido de agulha a muita linha ordinária.

Pena? Ou somente mais um passo na maquinização das pessoas, na vulgarização de suas mais íntimas aspirações?

 

18/06/2016
emelauria@uol.com.br

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