NAS
ASAS DA
BUROCRACIA
Está
muito
difícil,
quando
não
perigoso, falar-se dos
escabrosos
temas do Brasil
atual,
principalmente
depois da
terça-feira
sangrenta.
Tudo
caminha
com
tal
rapidez e
falta de previsibilidade,
que
um
palpite
dado
aqui num
sábado pode
tanto
virar
algo
semelhante a
adivinhação astrológica
quanto
absoluta
falta de
capacidade de
análise.
Crises espocam,
crises amainam
ou desaparecem,
mais uns
políticos viram
corruptos,
mais
pessoas desancam o
governo,
antigos
aliados põem
para
fora,
com a
maior
falta de
cerimônia,
segredos
que haveriam de
morrer
sem
eco, amortecidos
pelos
tapetes e
carpetes das refrigeradas salas
decisórias deste
país.
De
tudo ficam
tristes
certezas,
como a de
que
ninguém é
ingênuo,
como a de
que
em Brasília
todos
são coniventes
em
algo
escuso.
Nunca fui
freqüentador
assíduo das
ante-salas e
salas do
Poder,
tomada esta
palavra
como
síntese de
tudo o
que possa
advir do
Executivo, de
Legislativo e do
Judiciário.
Guardo,
por
isso,
muito poucas
lembranças de
contatos
feitos
com
figurões de quinze
minutos de
prestígio que
poderiam, querendo,
prestar
algum favorzinho a uma
escola, a uma
comunidade, a uma
região.
Imagem
positiva ficou-me de
um
militar,
coronel, se
não
me
engano,
responsável
por
um
cargo
também
novo – a Coordenadoria da
Defesa
Civil do
Estado de
São Paulo. Fomos a
ele
por
causa daquela
formidável
enchente de 19 de
janeiro de 1977.
Celso Amato, recém-empossado
prefeito, e
eu, novinho
em
folha
como
presidente da
Câmara, batemos a
São Paulo
em
busca de
recursos
para a
reconstrução das tantas
pontes
que as
águas do
Rio
Pardo e
seus
afluentes haviam destruído
em
manhã de
nenhum
presságio.
Não guardei
nem
quanto pedimos,
nem
quanto recebemos –
também
já se
vão vinte e
oito
anos. Sei
que
com a
verba
depois liberada, a
Prefeitura praticamente refez
não
só as
pontes,
mas o
sistema
viário do
município. Guardei,
isto
sim, a
figura
afável e compreensiva do
coronel,
com
certeza
afeito a
toda
sorte de
dificuldades enfrentadas
pelos
municípios
paulistas,
mas
nem
por
isso
capaz de
um
gesto de
impaciência
ou de
palavra
menos
polida a
seus
momentâneos
interlocutores, preocupados
exclusivamente
com o
problema de
São José do
Rio
Pardo e
sem a
mínima
noção dos
outros
tantos
casos
levados à
sua
consideração
só naquele
dia.
Imagem
negativa,
mesmo, construiu
um
político
ainda
hoje
atuante,
embora
em
franca
decadência. Dependia dele, da
assinatura dele, a
liberação de
vultosa
verba destinada ao asfaltamento de
pequeno
trecho de
rodovia de
muito
interesse
não
só de
São José do
Rio
Pardo,
mas de
cidades próximas. O
tal
político,
então
secretário
Transportes, ia
deixar o
cargo a
tempo de se
desincompatibilizar
para
concorrer a
cargo
eletivo. Combinara
com o
prefeito Lupércio
Torres
que
seu
último
ato
como
secretário seria
assinar
com
pompa e
circunstância a
tal
liberação de
verbas.
Por
isso, fomos a
São Paulo,
todos engravatados e
solenes, na
certeza de
que haveríamos de
arrancar daquele
político (um
bagre ensaboado, de
tão
liso
em
sua
demagogia) a
nossa estradinha asfaltada de
tanta
serventia.
Depois de
horas de
espera, na
sede da
Secretaria,
eis
que
chega
todo
falante e
com
ares de
magnânimo o
secretário. Ao
ver Lupércio,
só
lhe faltou esmagá-lo de
abraços. De
memória
famosa, sabia
nossos
nomes
todos e
nos tratou
com
familiaridade de
constranger.
Antes
que
lhe fizessem
qualquer
cobrança, foi confessando:
--
Querido Lupércio,
prezados
amigos de
São José.
Por uma dessas
trapalhadas próprias dos
períodos de
despedidas de
um
cargo,
eu ESQUECI
em
Campinas a
papelada
toda
referente à
estrada de
vocês. Desculpem-me,
eu
lhes peço,
mas
hoje
não será
possível
assinar
coisa alguma. Entrarei
em
contato
imediato
com
meu
sucessor e
desde
já
lhes asseguro
que o
mais
tardar na
próxima
semana
tudo estará resolvido.
Lupércio,
não sei se
pálido
ou
roxo de
raiva, deu
todos os
sinais de
seu
descontentamento. O
secretário, cobra-criada nas
artimanhas da
política demagógica, alisou-nos
quanto pôde.
Até
hoje a
tal estradinha é de
terra
batida e de
ruim
conservação.
Muito
mais
que
positiva, verdadeiramente encantadora, a
imagem construída
por
um
tal Dr.
Carvalho. O
ambiente
era o
formal e
quase
luxuoso de
alta
repartição, o
Tribunal de
Contas. Queria-se, precisava-se
falar
com o Dr.
Fulano,
mas
exatamente naquele
dia o Dr.
Fulano gozava de
seus
primeiros
momentos de merecidas
férias,
sempre adiadas
por
necessidade de
serviço – esclarece-nos o prestante
oficial de
gabinete.
-- Querem
ser recebidos
pelo Dr.
Carvalho?
(O prestante
oficial de
gabinete informou-nos
em
tom
quase sigiloso
que o Dr.
Carvalho
era o
substituto
natural do Dr.
Fulano.)
Que adiantaria
falar
com o
substituto, se
mesmo o
titular teria
dificuldade
em
nos
atender satisfatoriamente?
Em
todo
caso, acenou-se
que
sim.
Daí a
alguns
minutos, está-se
frente a
um Dr.
Carvalho bem-humorado,
cordial, dizendo-se
desde
logo rio-pardense.
--
Não diga!
-- Digo e
com
orgulho. Nasci e fui
criado
em
São José do
Rio
Pardo, numa
fazenda.
Meu
pai fez...
Meu
avô aconteceu...
Um
tio
meu realizou... E afluíram
passagens singelas da
meninice, de
um
pomar de
seis
alqueires, dos vinte e
cinco
quilômetros a
cavalo
para
vir à
cidade, de uns
primos
completamente
travessos.
Nem precisamos
dar
corda ao Dr.
Carvalho. De
início
não perguntou de
ninguém
ou de
nada.
Lá no
fundo de
seu
coração foi renascendo o
menino ocultado nas
regiões
mais amenas da
memória. E
ali
mesmo, no
formalismo e
quietude da
alta
repartição, o
menino falou
pela
voz do
homem, galopou na estradinha da
Vila Costina, tomou
banho de
cascata, fertilizou a
aridez da
hora
presente
com
lembranças nítidas.
Bem
que uma
vez
ou
outra (“eu sou
um
homem
ocupado,
só
penso
em
coisas sérias” –
tal
qual o
personagem do
Pequeno
Príncipe) o
burocrata tentou
dominar o
inesperado
menino
que vivia intocado,
oculto
mas
alerta nas profundezas
morais do Dr.
Carvalho.
Então ressurgia
momentâneo e a
contragosto o
servidor
público
que fornece
informações precisas e
toma
conhecimento dos
mil
problemas dos
outros. E o
menino repontava
logo
mais
adiante e se evidenciava
nos
gestos
calmos, no
brilho do
olhar
introspectivo do Dr.
Carvalho,
que
então perguntou
por
tantos
amigos,
que retomou tantas
coisas interrompidas havia quarenta
anos,
que se interessava
por
tantos
lugares fixados nas
suas
retinas de
menino,
que se
abisma
todo na recomposta
paisagem
interior.
Com emocionada
estima na
voz, falou de
um
senhor
que
fora
administrador de uma das
fazendas do
pai,
entre
São Sebastião da
Grama e
Poços de
Caldas.
Nem se chocou
quando soube
por
mim de
sua
morte,
só naquele
exato
momento. É
que na
memória do Dr.
Carvalho
já estava congelada a
imagem do
amável
administrador, inalcançável,
portanto,
por
qualquer
acontecimento
posterior.
Para o Dr.
Carvalho
aquele
velho
que
eu
também conheci e estimei,
nunca poderá
morrer,
enquanto
existir
aquele
menino
que se esconde na
alma do atarefado,
requintado e
cortês Dr.
Carvalho, rio-pardense
com
muita
honra.
Razão tem,
mesmo, o
velho
Machado: o
menino é o
pai do
homem.
11/06/2005
(emelauria@uol.com.br)
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