Professores desestimuladosA princípio, julguei que se tratasse apenas de um problema de falta de vocação, de falta de jeito. Agora vejo que não, que as causas da deserção têm raízes e motivações muito mais profundas. Com diferença de poucas semanas, fico sabendo de quatro ou cinco casos de abandono do magistério público por jovens que depositavam fundadas esperanças numa atividade profissional que, mesmo não sendo tão condignamente remunerada, seria ao menos forma adequada de inserção no mundo do trabalho. Rapazes e moças, recém-formados em curso de tendências humanísticas, submetem-se a concursos, são aprovados, escolhem os locais de exercício, iniciam a dura luta cotidiana e, de repente, chegam à conclusão desanimadora: - Não dá para continuar! Não dá para continuar lutando, com as poucas armas disponíveis, contra a indiferença e/ou agressividade dos alunos. É, objetivamente é isso. O professor novato chega à sala de aula, procura criar um clima de trabalho e respeito, mas só recebe a desatenção e o desacato de umas crianças dispersivas, desacostumadas de qualquer forma de disciplina e autocontrole. Procedem assim em casa, na vizinhança, nos ampliados círculos de seu pobre convívio social. Como procederiam de outro modo na escola? O novato docente de Português, ao tentar a adesão de seus alunos à crescente necessidade social de se comunicar e de se expressar com desenvoltura e clareza, vê erguer-se frente às suas pretensões a muralha da frase truncada, das locuções de mau gosto, do espírito piadístico, do nenhum desejo de progresso pessoal. E o de História? Como interessar aqueles desorientados grupos de meninos e meninas que nunca leram um livro, não têm hábito algum de reflexão, como os interessar na evolução milenar dos povos, nas conquistas das ciências, das letras e das artes? Como fazê-los ver o sentido de um gesto digno, de um ato heroico, de um sacrifício pessoal em favor do coletivo? E o de Geografia, com seus pobres eslaides, com seus mapas antiquados, quando não errados – como poderá lutar contra a força devastadora dos jogos de guerra, dos videogames sofisticadíssimos? Poderia, se já não bastassem os poucos exemplos dados, aplicar os mesmos raciocínios desmotivadores ao calouro professor de Matemática, de Ciências, de Educação Artística. Nada culturalmente significativo parece tocar a alma de adolescentes desarvorados na vida. Assim como acontece na sociedade consumista, em que qualquer miserável, impossibilitado de comer e vestir-se com um mínimo de decência, nem por isso deixa de ficar sabendo pela televisão sobre o que se come, se veste, se goza, se desperdiça nas classes privilegiadas, assim também nossos pobres alunos de modestas escolas públicas pouco têm em matéria de lazer, de cultura, de elevação individual, mas sabem como é possível a um jovem rico de sua mesma idade desfrutar em matéria de conforto, de fruição da vida... Estudar para quê? Terminar o ensino médio para quê? Poucos terão oportunidade de prosseguir estudos. E se a tiverem, ainda não é de se perguntar: para quê? As pequenas comunidades da periferia urbana sabem de um número crescente de pessoas que fizeram sucesso, mesmo nada tendo estudado. Este, aliando-se a promotores de atividades ilícitas; aquela, jogando tudo na funcionalidade da beleza física de vida efêmera. Como os fazer pensar a sério num trabalho desgastante, mal retribuído, quando os seus eventuais modelos, acertando um golpe de sorte, ganham num dia, numa semana o que o trabalho remunerado exige meses de dedicação? Não é este o lugar para aprofundamento de questões tão complexas. Quero, sem nenhum espírito de saudosismo, relembrar a tantos que se dedicaram pela vida toda ao magistério como fomos nele particularmente felizes e quase nem percebemos. Antigamente, ao contrário do que afirma velho e melodramático poema sabido de cor por tantos de nós, a escola não era risonha e franca. Era dura, exigente, seletiva, com as maldades e as vilezas próprias de uma época. Mas nós, produto dessa escola dura, exigente e seletiva, também fomos duros, exigentes e seletivos. E muito cobrávamos dos alunos, tendo o geral apoio das duas instituições profundamente envolvidas no processo educativo: a escola e a família. Não é o que se vê hoje, quando não raro a família em desagregação substabelece, para quem quiser, o mandato de educar as crianças e adolescentes. Inexperientes professoras de escolas rurais, ainda que recém-formadas, conseguiam, em outros tempos, resultados surpreendentes, porque contavam com o interesse dos alunos e com o incondicional apoio daquelas famílias tão modestas e tão desprovidas, que viam na educação a grande possibilidade de seus filhos progredirem na vida. As mestras dos grupos escolares, então, conseguiam imprimir em tantos de seus estudantes a marca de sua personalidade, de sua dedicação, de sua competência pedagógica. Nada mais confortante para o professor, seja do antigo primário, seja do antigo secundário, seja mesmo do ensino superior, do que ter, anos e anos depois, o seu trabalho reconhecido por ex-alunos, que relembram pessoas, fatos e situações permanentemente gravados nos corações e nas mentes. Marina, minha mulher, que lecionou por mais de trinta anos no antigo ensino primário, de repente é identificada comovidamente por desconhecido senhor ou desconhecida senhora, alunos seus em distantes épocas, nas fazendas Três Barras (Divinolândia), Viradouro, Santo Antônio. Isso sem se falar daqueles que estudaram no Cândido Rodrigues. São momentos muito significativos e muito gratificantes. Tenho recebido muitas provas de reconhecimento de pessoas a quem lecionei em diferentes lugares e diferentes épocas: São Sebastião da Grama, Vargem Grande do Sul, São João da Boa Vista, Guaxupé. De antigos estudantes do Euclides da Cunha, do Santa Inês, da Faculdade de Filosofia, do Grafos, da Unip, guardo as melhores lembranças e recebo constantes sinais de amizade e de reconhecimento. Ainda um dia destes, aparece aqui em casa um senhor de seus quase cinquenta anos, que quer falar comigo. Ao entrar, para surpresa minha, acompanham-no a mulher e a filha, o cunhado e a cunhada, o sobrinho e a namorada... Morando em Itajubá e estando a passeio em Poços de Caldas, vem a São José do Rio Pardo especialmente para rever alguns amigos e tentar contato com seus professores de terceira e quarta série ginasial no Euclides da Cunha, lá pelos começos dos anos setenta... Dos amigos, reencontrou poucos. Dos professores, ficou sabendo por mim da morte de tantos: Odilon, Vinício, Germinal, Itagiba, Lacerda... Faz questão de me perguntar coisas e coisas; fotografou, filmou, gravou; relembrou fatos de que eu não poderia mesmo ter conhecimento, mas cujo resumo é este: ele gostou muito da escola, dos professores, dos colegas. Considera seu curto período rio-pardense como dos melhores anos de sua vida. Este fato aqui narrado não é tão raro na vida de velhos professores, porque a escola era uma instituição com sua afetividade própria, com missão muito peculiar, reconhecida pelo Estado, pela sociedade e pelas famílias. Os novos professores, pouco valorizados pela sociedade, mal remunerados pelo patrão estatal, pressionados por fatores nocivos, como os jogos eletrônicos e a televisão sem nenhum compromisso educativo, talvez muito raramente venham, num futuro remoto, merecer esse tipo de homenagem que se enquadra no verso alexandrino que o velho Machado de Assis escreveu a respeito de integrar a Academia : Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola.
18/04/2009
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