VISÕES DISCORDANTES

 

Não é bem obrigação, mas com certeza praxe, falar-se da cidade, de sua bela trajetória, quando se comemora o 19 de março. De preferência, num tom laudatório.

Há quem ame muito, incondicionalmente; há quem ame criticamente; há quem alimente forte esperança; há quem fale na perda do bonde da história.

Eu me incluiria entre aqueles que a amam criticamente: não só a condição de rio-pardense nato, mas em especial a de morador antigo e participante, dá-me este direito de analisar até com alguma crueza a vida desta cidade, o que se pode esperar dela num futuro alcançável pela visão de alguém próximo dos três quartos de século de existência.

Outro dia, num desses encontros casuais numa rua qualquer, capazes de se transformar em matéria de reflexão, meu amigo de longa data me dizia:

-- Andei viajando por aqui e ali, no interior de São Paulo, e voltei com a estranha sensação de que São José está ficando para trás.

-- Para trás em quê?

--  No ritmo do desenvolvimento regional, naquilo que pesa na formação de conceito sobre uma cidade qualquer: os sinais exteriores de progresso.

-- Que sinais seriam esses?

-- Em primeiro lugar, o movimento das ruas.

-- E aqui não há esse movimento? Há gente que acha exagerado o número de veículos da cidade...

--  Até que há, mas  localizado: supermercados cheios em tais ou quais horas, porque os pequenos empórios desapareceram; ruas centrais atravancadas, principalmente aos sábados de manhã. Falo de um movimento “cadenciado”, o dia todo, a semana toda, indicador de atividade produtiva e não apenas de gente flanando por aí, a pé ou de carro, com hora certa de voltar pra casa... Há quem vá ao supermercado três, quatro vezes ao dia, num exercício de vida social – encontrar pessoas, papear à sombra, sem correr maior perigo...  Parece que falta entre nós uma espécie particular de atividade – a da indústria, da produção, da criação de coisas. Vejo sempre muito comércio, ou melhor dizendo, tentativas de comércio, porque com a mesma facilidade com que se abrem duas lojas, fecham-se três...

Dei corda para meu amigo verbalizar toda a sua pessimista teoria sobre os sinais exteriores de progresso.

-- Veja, prosseguiu ele, nada há de grande em andamento na cidade, seja de iniciativa privada, seja no setor público. Estamos mal servidos de estradas, bastando lembrar que nem se cogita da duplicação da SP-350, que vai até Casa Branca. Quando muito, umas terceiras faixas para justificar pequenas vitórias políticas. Para quem chega a São José, lidar com a entrada da cidade é um exercício de paciência ou prova de muita atenção ao contornar trevos de curvas malfeitas que tiram até o prazer do reencontro. E outra: para irmos a Divinolândia, precisamos chegar a São  Sebastião da Grama, um cotovelo...A estrada direta (de terra) existe. É só asfaltar. Haverá alguém contra? Ninguém para conseguir?

-- Você não está indo além da conta? - cutuco.

-- Antes fosse. Note quanta coisa temos perdido nos últimos tempos: a centenária companhia local de eletricidade, vendida a multinacional que até transferiu para Jaguariúna a sede da empresa;  uma tradicional marca de transporte coletivo, agora reduzida a subsidiária  de outra, de Mojiguaçu,  parece. Nem os ônibus são licenciados na cidade. Revendedoras de portas fechadas... Se você comprar um fusca aqui, todas as revisões e eventuais reparos se darão em Mococa. Se preferir um Fiat, seu carro será enviado a Guaxupé. Se um Ford, nem sei.

-- Mas isso é tão importante assim?

-- Não sei avaliar toda a importância. Só fica patente que as pessoas aqui residentes deixaram de ter certas comodidades, que houve quem perdesse o emprego e que o dinheiro da venda de veículos e peças não fica aqui.

-- Mas há sinais de progresso em tantos outros setores, como na educação, na saúde, na cultura, nos esportes...

-- Você é mesmo um otimista incurável. O que temos de ensino superior gratuito?

Veja como está difícil a simples instalação de um centro de hemodiálise e outro de quimioterapia para servir a cidade e a região... Imagine, como eu conheço, o drama de gente que, velha e doente, precise ir três vezes por semana a São João da Boa Vista e lá ficar grande parte do dia à espera de condução para retornar, só porque algum figurão  anda dificultando as coisas para São José...

-- Puxa, hoje você está mesmo amargo!

-- Não é bem isso. Não podemos ficar iludidos com palavras bonitas que vão ao encontro de interesses nem sempre muito sutis e que querem porque querem vender a idéia de que vivemos no melhor dos mundos, que somos ótimos em tudo, com IDH 0,999...

-- Tenho certeza de que não. A cidade está muito, mas muito atrasada no saneamento básico, por exemplo. Nossos córregos se transformaram em esgoto a céu aberto, o serviço de água deixa a desejar, a segurança pública apresenta falhas, as oportunidades de colocação de pessoas no mercado de trabalho continuam problemáticas...

Meu amigo tão observador foi embora, mas me deixou pensando numas tantas verdades contidas em sua crítica, quem sabe cáustica. Não é animador ver, por exemplo, o número excessivo de placas com “aluga-se” e “vende-se”. Só na região central contei uma dezena delas, além de prédios em desuso. Isso não é, mesmo, indício de febricitante atividade econômica. Não gosto também do caráter de louvação que se dá a algumas conquistas esportivas, quase sempre fruto de esforço individual e não o natural resultado de trabalhos de massa e de base.

Pior do que tudo isso, penso eu, são os sinais exteriores de desamor à cidade, com as pichações, depredações, o mau uso das instalações públicas. Nem me atrevo a tocar no problema das drogas e todas as suas decorrências.

Imagine-se que a redoma protetora da cabana de Euclides da Cunha, inaugurada em 1928, objeto do maior respeito, de uns tempos para cá tem sido alvo de pedradas! Não uma vez. Pedras atiradas por vândalos postados na avenida próxima. Há até um movimento de iniciativa particular para a substituição dos atuais vidros, tipo blindex, por outros laminados, mais resistentes. Um local tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional!

Quando é que nós, alunos do Instituto de Educação Euclides da Cunha de outras eras, nos atreveríamos sequer a nos sentar no gradil de madeira da frente daquele prédio tão imponente, doado pelo povo ao governo  paulista para a instalação de nossa primeira escola de ensino secundário?

Pois não é que há mais de dez anos começaram a quebrar tudo? Tanto quebraram, que foi necessário substituir o gradil todo. Agora as novas grades que deveriam  durar ao menos cinqüenta anos, encontram-se já  em estado lamentável, provavelmente a ponto de serem substituídas, espero que  até outubro, quando se comemorará o setuagésimo aniversário daquela escola. Os rio-pardenses ausentes já entraram em contato com a bem-intencionada diretora do “Euclides” para as festividades do evento.

Exemplos do mau comportamento das pessoas nas praças públicas, nos ginásios de esportes, nos clubes sociais poderiam ser dados às dezenas.

Como ficamos, então? As pessoas são o produto da educação que deveriam ter recebido em casa. Se as instituições familiares falham e transferem todos os problemas para a sociedade em geral, pouca coisa se poderá fazer com sucesso. Socializar esta moçada de hoje, tão sem limites e sem freios, dar-lhe noções claras de civilidade --  é tarefa quase  sobre-humana.

Às vezes, dá para sentir-se alívio quando já não se tem de conviver compulsoriamente com pessoas sem nenhuma noção de respeito aos outros, aos lugares e aos bens públicos.

Mas a cidade tem muita coisa boa, ótima. Muita gente boa, ótima. Basta saber quando e onde não encontrar os tipos do comportamento anti-social que tanto incomodam

E essa perda necessária no direito de ir e vir não é bom sintoma.

 

18/03/2006
(emelauria@uol.com.br)

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