Oitenta feitos
Fazia já uns meses que eu vinha notando um clima de conspiração, de segredos de polichinelo, até que veio a pergunta curta e grossa: o que é que eu queria que se fizesse no dia de meu octogésimo aniversário de nascimento. Não foi difícil chegarmos a um consenso – nada de grandes eventos, nada de envolver muitas pessoas. Apenas um almoço familiar em local que não desse trabalho a ninguém e que criasse um ambiente bem descontraído. Foi o que aconteceu no sábado passado, 11, no restaurante que bem merece o nome: Quintal.
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O ruim de se completarem os oitenta anos é que caem por terra todas as atenuantes quanto à implantação da velhice. Em lugar nenhum do mundo, octogenário não é velho. Sim, porque o que não falta são especialistas na difícil arte de dourar pílulas. Provam por a+b como a expectativa de vida vem aumentando, como a vida começa aos oitenta, como isso, como aquilo. Tratam o decurso do tempo como inimigo que pode ser vencido. Engano ledo e cego, porque o tempo é, mesmo, o solvente universal e o senhor da verdade.
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O marquês de Maricá, autor de umas Máximas às vezes sem a mínima inspiração, disse com autoridade que poucas coisas haverá mais ridículas no mundo do que um velhote que não aceita a sua condição etária. Também é dele essa forte comprovação: “Estuda-se mais na velhice para bem morrer do que se estudou na mocidade para bem viver”. Meu sogro pensava a mesma coisa, com palavras diferentes. Para ele, praticar religião era “para o fim da vida”!
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Lembro-me da bela lição que uma senhora de minhas relações me deu quando, na sua comemoradíssima festa de oitenta anos, eu quis ser-lhe agradável com aquela surrada conversa de que ela não aparentava a idade que dizia ter. Ela me rebateu filosoficamente: - Hoje há recursos para tudo, ou quase tudo. As mulheres (e muitos homens também) fazem plásticas, implantes, tinturas, rebocam aqui, escoram ali, preenchem lá, esvaziam acolá, mas há dois lugares que traem terrivelmente: o pescoço e os braços. Alguns pescoços de mulheres muito bem tratadas não perdem, apesar de tanto esforço, aquele triste aspecto de papadas de peru, moles, enrugadas, vermelhas... E os braços? Mulheres não gostam de dar adeusinhos, se não usam roupas com mangas compridas. Porque quando suspendem os braços, uma parte bem flácida lembra umas bandeirolas pairando ao sabor do vento... Homem velho que não exercita os braços, também.
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Mas com a passagem desenfreada do tempo, esses expedientes quase infantis de esconder idade perdem cedo a validade. O ingresso prematuro de meninas no circuito do trabalho, da moda, da vida social, etc. (principalmente no etc.) faz com que mulheres lindíssimas, no auge do esplendor físico e intelectual, se julguem passadonas, incapazes de competir em pé de igualdade com teen agers, superdotadas de beleza, juventude e graça.
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Há muito aprendi que não se luta contra os moços, mas se alia a eles, quanto mais cedo melhor. Atribuo a esta sincera admiração pela mocidade alheia muito de meu saldo positivo como professor, como cronista, como pai e avô. Quando os muito jovens (e muito inexperientes) percebem que há velhos que os admiram e os estimulam de coração aberto, passam a tratá-los melhor, aceitam algumas sugestões, alguns conselhos disfarçados, alguns modos de cortar caminhos tortuosos.
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A melhoria geral das condições de vida e saúde está fazendo rapidamente do Brasil um país de velhos, com um número assustador de sexagenários, setuagenários e octogenários em pleno carpe diem, querendo aproveitar cada momento, recuperar o tempo perdido, gozar das delícias do corpo e da mente, sair por aí em viagens e aventuras antes inimagináveis. Sim, porque nós, madurinhos e madurões, temos insuspeitada capacidade de nos beneficiar do galopante progresso de agora, em mil diferentes facetas. Esse Estatuto do Idoso, então, barateia, facilita, estimula um mundo de atividades. Nosso ingresso no maravilhoso mundo da informática nos deixa surpresos e entusiasmados. Mesmo quando se domina mal e mal a técnica mais rudimentar de lidar com o computador, poucos homens ou mulheres com mais de sessenta anos e algum nível de instrução não se rendem a seus encantos, a suas possibilidades, ao mundo novo que se abre à nossa curiosidade, ao nosso serviço. E o celular e seus incontáveis avanços, então?
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Em outras épocas, não tão remotas, pessoas respondiam até ao boa noite de Cid Moreira, ao fim do “Jornal Nacional”. A televisão era a companheira inseparável e insubstituível de milhões de velhos solitários. Sílvio Santos, com seus programas de auditório, era tido por uma senhora muito amiga de Marina como seu mais importante parente... O computador, a internet, o celular tornam mais pessoais e mais completas as comunicações de solitários por necessidade ou vocação. Num consultório médico, acompanhei o papo de duas mulheres sessentonas. Uma delas assim justificou a cara de sono que a outra notara. “É que fiquei até de madrugada jogando pôquer...” A outra estranhou: “Jogando pôquer onde?” “Na internet, uai...”
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Com minha pouca vontade de viajar, de sair dos meus restritos confortos, lembro-me sempre da crônica de Carlos Drummond de Andrade em que ele confessa a sua nenhuma disposição de enfrentar filas, apertos, empurrões, para ver o que quer que seja. O bom para ele (e para mim) é que os eventos aconteçam quase secretamente na cidade, se possível em outro bairro, melhor ainda em rua que nem eu conheço. Não compartilho desse tipo de delírio ambulatório em que pessoas que ficam seis meses sem uma longa e atribulada viagem ao Laos ou a Machu Picchu se queixam da falta de aventura em suas vidas. Não chego ao cúmulo de imitar Xavier de Maistre ou Machado de Assis. O escritor francês é autor de alentado romance que tem por título Viagem ao redor de meu quarto. O nosso maior literato, carioca de nascimento, vida e morte, só saiu do Rio de Janeiro uma vez, ainda a conselho médico, porque estava quase cego. Foi a Nova Friburgo e lá, tirando tudo o que já estava organizado em sua mente, ditou à inseparável Carolina os capítulos iniciais de Memórias póstumas de Brás Cubas, o primeiro de seus romances de fundo realista e psicológico.
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A literatura de todos os tempos e de todas as línguas tem frases díspares sobre velhos e velhice. Lembro algumas:
Shakespeare: Dizem que a velhice é a segunda infância. Vauvenargues: Os conselhos da velhice aclaram sem esquentar, como o sol do inverno. Lichtenberg: Não fosse a lembrança da mocidade, não se ressentiria a velhice. Toda a doença consiste em não se saber fazer mais o que se soube outrora. Pois o velho, em seu gênero, é decerto uma criatura tão perfeita como o moço na sua. Goethe: Não valeria a pena chegar aos setenta anos se toda a sabedoria do mundo fosse tolice perante Deus. Trotski: A velhice é a mais inesperada das coisas que acontecem a uma pessoa. Mário Quintana: Velhice é quando um dia as moças começam a nos tratar com respeito e os rapazes sem respeito nenhum. Júlio Camargo: Se a velhice existisse para todos, não haveria necessidade do inferno. Cícero: Torna-te velho cedo, se quiseres ser velho por muito tempo. La Rochefoucauld: Os velhos malucos são mais malucos que os jovens. Balzac: Os anciães são bastante inclinados a dotar com suas mágoas o futuro dos moços. Pedro Fraga: Não estamos realmente velhos enquanto nossos anos não começam a pesar nos outros. Eno Teodoro Wanke: A velhice tem suas vantagens, claro. Só nos resta agora descobrir quais são elas.
Agradeço muito as mensagens de felicitações recebidas pelos mais diversos modos. Se não é bom ficar muito velho, é ótimo ser lembrado por amigos.
18/02/2012
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