Ouviram do Ipiranga
Francisco Manuel da Silva (1795 — 1865)
Recebo pela enésima vez um vídeo que trata das mutilações que a difícil letra do Hino Nacional sofre na boca de nosso povinho. Lembrei-me de já haver, faz muito tempo, escrito um comentário sobre essa dificuldade que se tem ao lidar com um dos símbolos da Pátria. João Ubaldo Ribeiro, o espirituoso escritor baiano precocemente falecido, conta com graça e até justo orgulho um episódio de sua vida de ginasiano em Salvador. Em exame oral, seu professor de Português lança-lhe um desafio: se souber qual o sujeito da primeira frase do tal hino, receberá nota dez e se livrará das demais perguntas. A frase, todos sabem, é Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante. João Ubaldo não tem dúvida e responde sem titubear: - As margens plácidas do Ipiranga. O professor, com certeza um daqueles que tinham estudado nos Serões Gramaticais, de Ernesto Carneiro Ribeiro, mestre de Rui Barbosa, exultou de alegria: - Parabéns! Parabéns! Ato contínuo, consignou-lhe o prometido dez e o dispensou das demais perguntas, que com certeza versavam sobre literatura, ortografia, análise sintática e outras armadilhas de nossa flor do Lácio, inculta e bela. Vale a pena conhecer um pouco das muitas peripécias que o nosso hino (desculpem o cacófato nó suíno, que o persegue desde sempre) sofreu ao longo de sua variada história: Composto em 1831 (já se vão cento e oitenta e cinco anos) como Hino da Abdicação, seu autor é Francisco Manuel da Silva, criador do Imperial Conservatório de Música. De início era cantado com letra de um tal Ovídio Saraiva. Na coroação de D. Pedro II, em 1841, o hino recebeu nova letra e passou, por expressa vontade popular, a ser considerado o Hino Nacional ; resistiu a todo o longo Segundo Reinado, que terminou inesperadamente com a proclamação da República, em 1889. A letra teve de ser relegada, porque não fazia sentido com a reviravolta histórica. - Já que era imperioso mexer na letra, por que não na música? Houve, para tanto, a abertura de concurso público, com julgamento final no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Vencedor: Leopoldo Míguez, que teve com o correr dos dias uma triste surpresa, até hoje repetida nos festivais de música: quase nunca a opinião dos jurados coincide coma soberana vontade do povão. Daí partiram para uma tremenda acomodação, fato que ocorre com frequência em nossa conturbada história: a peça vencedora do concurso passou a Hino da Proclamação da República, com letra de Medeiros e Albuquerque, aquele que começa assim: “Seja um pálio de luz desdobrado/ sob a larga amplidão destes céus / este canto revel que o passado/ vem remir dos mais torpes labéus”. Duvido que algum de meus leitores lembre sem consulta ao dicionário o que venha a ser pálio, revel, remir e labéus. O velho Hino Nacional, por decreto do Marechal Deodoro em 1890, continuou Hino Nacional, sem letra, apenas a marcial composição de Francisco Manuel da Silva. Aí chegaram as comemorações do Centenário da Independência (1922) e ficaria muito estranho que o Hino continuasse sem letra. Novo concurso, participação de dezenas de concorrentes, saindo-se vencedor um longo e pretensioso poema de Osório Duque Estrada, um poeta assim-assim, integrante da Academia Brasileira de Letras. Na ferina observação do crítico Agripino Grieco, tinha ele a particularidade de não merecer o nome de Osório (herói da Guerra do Paraguai) e de não ser nem duque nem estrada... Difícil a compreensão de suas frases e, por consequência, a sua memorização correta. Não é qualquer brasileiro bem-intencionado que empregue ou sequer capte o sentido de termos como plácidas, brado, fúlgidos, penhor, vívido, impávido, florão, garrida, lábaro. Tenho que a parte mais fácil de se entender é a que aparece entre aspas nos textos oficiais, porque reproduz palavras da sensibilíssima “Canção do Exílio” , de Gonçalves Dias, este sim um poeta de primeira categoria: Nossos bosques têm mais vida,/Nossa vida, no teu seio, mais amores. Mas volto a João Ubaldo Ribeiro e sua acertada resposta quanto ao sujeito da primeira frase de nosso hino (nó suíno...): As plácidas (=calmas) margens do (riacho) Ipiranga ouviram o retumbante (= estrondante, barulhento) brado (=grito) de um povo heroico. Isso de dar a coisas ou objetos inanimados (margens) prerrogativas humanas (ouviram) constitui uma figura de linguagem chamada prosopopeia ou personificação. Essa licença poética pareceu demasiada a muita gente, que resolveu por conta própria colocar um acento de crase no começo da frase: Às margens plácidas do Ipiranga ouviram (alguém, sujeito indeterminado) o brado retumbante de um povo heroico – o que muda completamente o sentido do texto. Apesar de todas essas dificuldades, o Hino brasileiro é um dos mais líricos do mundo e sua correta execução tem proporcionado a cada um de nós momentos de inevitável nó na garganta. Basta lembrar as muitas entregas de medalhas de ouro, nos jogos olímpicos do Rio de Janeiro. Antes isso.
17/12/2016 |