Dois domingos, dois mundos

 


A finada primavera

 

Domingo, 4 de dezembro de 2011

Disfarçam  o quanto podem, mas na verdade estão nervosos  e temerosos. Tanta coisa tem acontecido com o Corinthians, que não sabem, não. Apesar de toda sua má fase atual, Palmeiras é Palmeiras, clássico é clássico.

Depois de liderar o Campeonato Brasileiro por trinta e tantas rodadas, dando às vezes a impressão de que o ganharia com um pé nas costas, o Corinthians não é o campeão antecipado porque no quadragésimo oitavo minuto do segundo  tempo do jogo de um domingo anterior, o Vasco da Gama  marca um gol que matou as esperanças corinthianas de enfrentar já campeões o Palmeiras. Quem sabe até de receber deles a faixa de campeões. Hoje falta ao Corinthians  apenas um ponto, precisa ao menos empatar.

Enquanto mal consegue sustentar um zero a zero retrancado no Pacaembu, o Corinthians espera que o Flamengo  vença o outro candidato ao título, o  mesmo desmancha-prazeres Vasco da Gama.

De repente, a má notícia: gol do Vasco da Gama – o que aumenta a responsabilidade do Corinthians,  que precisa porque precisa não perder do Palmeiras.

E os minutos se arrastam, o Corinthians não se acerta, o Palmeiras mete uma bola na trave, os corinthianos  do mundo todo  se roem até quase o cotovelo. Não se trata só de perder mais um título dado como favas contadas, mas o duro será a gozação de palestrinos, são-paulinos e santistas. Ainda mais com a construção do estádio que abrirá a  Copa de 2014, a torcida anticorinthiana é imensa.

Até quem enfim, o desafogo – o Flamengo empata com o Vasco, o que dá ao Corinthians a vexatória possibilidade de ser campeão mesmo derrotado pelo Palmeiras. Ufa! O jogo do Pacaembu termina. Menos mal. Corinthians campeão, meio sem brilho, mas campeão. Gastam-se os estoques de fogos, acumulados desde o fiasco na   Libertadores.

 

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Meu sisudo leitor deve de estar se interrogando por que só agora trato deste assunto tão fora de foco; sim, porque no imediatismo das coisas, dois ou três dias são suficientes para envelhecer irremediavelmente uma notícia, mais ainda na área esportiva.

Aí peço um pouco de paciência a todos e passo à outra face do meu comentário de hoje. Aguardem, para que depois eu possa atar as pontas do enredo.

 

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Domingo, 11 de dezembro de 2011

Aqui estava eu, posto em sossego, colhendo do solitário domingo o possível fruto, quando a benfazeja mão do acaso me levou a sintonizar a TV Cultura. Um terceto de cordas (violino, violoncelo e piano) composto de gente jovem ataca com garbo e certa ousadia um  trecho de Schubert, se não me engano. Logo identifico o local, nada menos do que a suntuosa Sala São Paulo, sem dúvida o melhor auditório  de música erudita do Brasil.

Já estive lá diversas vezes, admirando não só as linhas da bela construção –  a antiga estação Júlio Prestes da Estrada de Ferro Sorocabana, transformada pela engenharia moderna numa referência mundial como  local de execução do mais refinado tipo de música. Invejável sua acústica, majestosas suas instalações, amplíssimos seus recursos técnicos.

Pensei que eu tivesse sintonizado sem querer um burocrático programa, daqueles destinados a preencher espaços vazios  das tardes domingueiras, nas chamadas televisões públicas, de baixo ibope.  Nada disso. Eu estava frente à finalíssima do talvez mais importante concurso musical de nossos tempos, justamente chamado Pré-estreia, dada a sua finalidade: proporcionar oportunidades para jovens talentos de todo o Brasil mostrarem não apenas dons inatos, mas técnica assimilada dos melhores do ramo.

Nos intervalos das apresentações de conjuntos ou de solistas, o maestro Galindo, regente da Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí, vai rememorando os programas anteriores, o processo de seleção dos candidatos. De mais de cem, provenientes de todas as partes do País, vinte e quatro são selecionados em diversas audições realizadas na Faculdade Santa Marcelina, de São Paulo. Os semifinalistas são apurados em Tatuí. Agora se defrontam os finalistas.

Fico encantado com os dois disputantes individuais: um violonista, oriundo de pequena cidade de Minas Gerais, cujo nome termina por Rio Abaixo. Outro, trombonista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Dois virtuosos, sem dúvida. O violonista vai com um concerto de Villa-Lobos para violão e pequena orquestra. O trombonista (trombone de vara) escolhe composição de autor alemão, muito adequada a seu instrumento e muito valorizada pela orquestra de Tatuí, de boa massa sonora.

O duo que vence o concurso de conjuntos, eu não o ouvi tocar.

O trombonista ganha com largos méritos o primeiro lugar individual. Muitos aplausos, muita festa, muitos prêmios.. De início, trinta e cinco mil reais para os primeiros lugares e quinze mil para os segundos. Depois, algumas surpresas, como mais uns troquinhos em dinheiro, como a contratação para cinco e dois concertos, respectivamente  para os primeiros e segundos colocados de cada categoria. Até o Consulado norte-americano entra com inesperado prêmio de viagem de estudos aos Estados Unidos para o  vencedor individual.

Fica-se sabendo que mais de trezentas pessoas estiveram envolvidas com Pré-estreia, desde agosto. Coisa de encher todos os participantes do mais justo orgulho. E excelente notícia: já está programada a Pré-estreia de 2012. Inscrições a partir de março.

 

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Atando as pontas

Duas fontes de pura emoção, diametralmente distantes nas causas, nas consequências e na valorização pessoal, prenderam-me a atenção nos dois domingos.

 Não sei quanto os jogadores do Corinthians ganharam pela conquista do quinto título nacional. Fora de qualquer dúvida, muito mais do que todos os  prêmios justamente ofertados aos vencedores da  competição musical da TV Cultura. Isso sem se falar na irrealidade de valores dos contratos, dos salários, dos brindes que marcam o período de apogeu das carreiras futebolísticas bem-sucedidas. Alguém calculou que um sujeito ganhando mil reais por mês, ao fim de quarenta anos de trabalho  terá recebido  quinhentos e vinte mil reais. Há jogador que  tira mais que  isso por mês...

Mas não é só na quilométrica distância de valorização do futebolista e do musicista que vejo toda a diferença social e cultural dos vencedores desses dois domingos, 4 e 11 de dezembro de 2011.

O Campeonato Brasileiro movimenta cifras inimagináveis, eleva e abate ídolos, cria situações de duvidosa honestidade, com resultados talvez manipulados em atendimento a um sem-número de interesses conflitantes.

 Humildes garotos de repente se veem elevados às alturas, perdendo completamente a noção do valor do trabalho árduo e mal remunerado daqueles que paradoxalmente enchem os estádios, assistem aos programas esportivos, compram a preços escorchantes camisas com emblemas e números, deixam-se levar pela paixão e sofrem terrivelmente pelos seus clubes preferidos.

Longe de mim desmerecer o futebol, os futebolistas e os torcedores. Preocupa-me, antes, a perda do senso da realidade, a falta de educação esportiva, a ausência de fair play, a desproporção entre os malefícios e os benefícios decorrentes do difícil convívio humano, da falta de civilidade. Estádio de futebol está longe de ser um local educativo, para dizer o menos. Sala de espetáculos musicais é socializante, aprimora  gostos e atitudes.

Sacrifícios e privações de toda ordem marcam quase inevitavelmente a vida de quem se dedica à arte, de modo geral. Recompensas materiais quase nunca lhes correspondem ao pleno esforço de tantos anos. Não se está falando, é evidente, dos pop stars da música.

Prestei especial atenção  à absoluta doação de todos quantos estiveram em ação naquele belo programa televisivo.  Concentração. Dedicação plena. Qualidades morais dessa categoria é que fazem o progresso espiritual e intelectual das pessoas. O autodescobrimento não se consegue no cultivo do fanatismo clubístico nem na louvação  individual dos ídolos tantas vezes de efêmera duração. A vitória pessoal está muito mais acessível a quem procura expandir suas vocações, seus talentos, que tornam mais digna a existência humana, através do trabalho artístico, embora nem sempre reconhecido em sua plenitude construtiva.

 

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Conclusão

A vida de todos nós seria muito mais meritória se nossas emoções e nossas admirações tivessem  origem mais vezes em atos e fatos ligados ao mundo do  11 de dezembro, não ao do  4 de dezembro. Difícil, não?

 

17/12/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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