A atualidade de Euclides

(Texto básico de minha participação na mesa-redonda sobre a atualidade de Euclides da Cunha, na Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro,  sob a presidência de Alberto Venâncio Filho, a 15 de outubro de 2009)

O tom das comemorações do centenário da morte de Euclides constitui por si mesmo a prova maior de sua atualidade.

 Diferentemente das manifestações que marcam efemérides relacionadas com escritores no sentido usual do termo – em que predominam estudos de aspectos ligados à arte literária, às técnicas de composição de cenas e paisagens, à psicologia ficcional  das personagens –, na justa rememoração de Euclides  multiplicam-se análises que ligam o escritor e suas obras aos problemas contemporâneos do Brasil e de seu povo.

Que quer isso dizer? Sem dúvida que a obra euclidiana é de uma atualidade que não haveria de condizer com os mais de cem anos já passados de sua publicação. As razões dessa atualidade são dignas de estudo acurado, levantando-se a esse respeito algumas indagações das mais instigantes:

1. Não seriam exageros euclidianos as muitas advertências feitas quanto ao modo correto de encarar-se o conflito de Canudos, a ocupação da Amazônia., o aproveitamento de recursos naturais, o respeito às leis de exploração do solo?

2. Teria a visão euclidiana sobre esses mesmos problemas algo de profético, de pessimistas advertências, de críticas  das mais severas?

Antes fossem as críticas, advertências e soluções apontadas por Euclides para os grandes problemas nacionais (alguns latentes ao seu tempo) apenas exageros de sua maneira peculiaríssima de ver as coisas, sempre retoricamente apoiada na antinomia e na intensificação..

Ao fazer de Os sertões uma espécie de demonstração matemática, em que a frase da Nota Preliminar – (Canudos) foi um crime, denunciemo-lo – tem de ser ligada à frase final do livro – É que não existe um Maudsley para os crimes e as loucuras das nacionalidades – todo o conteúdo do grande livro  passa a ser prova para a defesa de sua tese. Só lhe faltou colocar ao final um Quod erat demonstrandum...

Ao tempo da publicação do grande livro (1902), ainda não tinha sido cunhado o termo que melhor resumiria o pensamento euclidiano a respeito da ação governamental na campanha de Canudos: genocídio, vocábulo só posto em circulação internacional nos meados dos anos 40 do século passado, a propósito do holocausto judeu.

Isso quer dizer que todas as mazelas postas à meridiana claridade por Euclides em Os sertões fazem do livro algo de  preocupante atualidade, porque muitas delas não apenas persistiram, mas ganharam contornos mais amplos, de solução muito mais complexa. Aí estão as secas, as migrações internas, a demora cultural, as desigualdades regionais, as injustiças na posse da terra e  nas relações interpessoais  dos poderosos com os humildes

Fiquemos, pois, com a certeza de que o livro vingador é de incômoda atualidade, tendo servido como o despertador da consciência nacional  para os problemas de um Brasil profundo que o litoralismo  da cultura brasileira ignorava por inteiro..

Na rápida incursão que nos é dado fazer, digamos apenas que nos dois livros cronologicamente mais “modernos” de Euclides – Contrastes e confrontos (1907) e À margem da História (1909) fez muita falta outro termo que seria posto em voga internacional cerca de quarenta anos após sua morte: ecologia. Euclides exercitou permanentemente suas intuições ecológicas, antecipando-se a tudo que, tempos depois, seria a maneira correta de abordagem dos problemas do relacionamento do homem – agente geológico notável -  com a Terra, tomada até num sentido mítico do lugar que o gênero humano tem de tratar e conservar para garantir sua própria sobrevivência.

Em Contrastes e confrontos, a preocupação ecológica euclidiana, já presente em Os sertões, assume feições muito claras, em especial em “Fazedores de desertos”, artigo publicado em O Estado de S. Paulo, a 21 de outubro de 1901, quando com certeza o seu principal livro já ganhava retoques finais.

Surpreendentemente, esses fazedores de desertos não foram flagrados em atividade na Amazônia ou no Nordeste. Euclides detecta-os no interior de São Paulo e denuncia um fato que nos pareceria impensável: há já mais de cem anos teve ele a percepção de mudanças climáticas provocadas pelas queimadas, triste herança do nomadismo indígena. Hoje, com a combustão de imensos canaviais, o nível da poluição e da secura do ar vem atingindo índices inimagináveis.

Vai fundo Euclides da Cunha na fria  análise  sobre o desbaratamento das riquezas do solo paulista, até chegar a triste epílogo: o homem não mereceria estar entre as grandezas com que a natureza o dotou: não corrige essas grandezas nem as domina nobremente, nem as encadeia num esforço consciente e sério. Extingue-as.

Não tivesse a vida de Euclides sido violentamente interrompida na flor dos quarenta e três anos, certamente a literatura brasileira haveria de contar com mais obras do quilate de Os sertões. Amostras dessa capacidade de tratar grandes temas não faltam. Um paraíso perdido, projeto ambicioso de estudar a Amazônia e a presença prematura do homem, intruso nem esperado nem querido, teve suas partes iniciais abrigadas em À margem da História, com páginas de profundezas temáticas e perfeições formais  aliadas a uma atualidade que surpreende e comove.

Mais de um século decorrido, a viagem de Euclides  às cabeceiras do Alto Purus é repetida, este ano,  por jornalista a serviço do mesmo jornal O Estado de S. Paulo. Em linhas gerais, nada mudou no panorama dos rios, que continuam em abandono, com populações ribeirinhas à mercê da própria sorte. A figura dramática do Judas-Ahsverus engendrada por Euclides em momento de dolorosa desesperação pessoal, a ponto de poder ser vista como sua autobiografia moral, é por lá ainda encontrável, como se a assertiva forte pudesse valer nos dias que correm: o seringueiro é exemplo único na história de quem paga para se escravizar!

Encerremos este sucinto vôo panorâmico sobre algumas causas da atualidade da obra euclidiana. Digamos em suma que, mesmo num futuro quiçá longínquo, quando os problemas suscitados por Euclides da Cunha há mais de cem anos tenham alcançado soluções definitivas, nem por isso seus livros perderão o impacto de perenidade. É que, pela poderosa transfiguração verbal posta por Euclides a serviço do Brasil, seus escritos continuarão de valor permanente, pois vazados  no bronze perene das arte, guardando consigo a marca das obras-primas, infensas à passagem dos séculos, porque dotados da mais edificante função exercida pela palavra escrita –  a de sintonizar o leitor de todas as épocas na percepção dos sofrimentos que marcam a passagem do homem sobre a Terra.

 

17/10/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

Voltar