DAS MIUDEZAS EM GERAL

 

DA PARTILHA

A motivação de escrever sobre tema é o filme nacional A Partilha, baseado em peça teatral  de Miguel Falabella, com boa consideração do público e da crítica. Dele guardo impressão favorável, menos pela profundidade do tratamento dado do que pelo desempenho muito satisfatório do elenco, experimentado no que os americanos chamam sitcom, comédia de situação.

A abordagem  da partilha em literatura quase sempre redunda em disputas acirradas, pretensões contrariadas e agravamento de más relações entre os interessados no resultado da divisão de bens de um falecido parente.

Machado de Assis, entre tantos, consegue extrair profundas reflexões do tema radicalmente ligado ao egoísmo humano, reduzindo tudo a uma frase lapidar: “Em se tratando de interesses, todos perdem a compostura”.

Miguel Falabella, apesar de sua vivência como autor, diretor e ator, não chega a tal grau de concisão, mas consegue construir uma visão adequada sobre as dificuldades dos relacionamentos interpessoais, optando por conclusões às vezes simplistas que levam à reformulação e até ao fortalecimento da abalada convivência entre irmãs criadas em clima de harmonia doméstica.

Sob o aspecto jurídico elementar, o filme enfoca a partilha na vertente da formação e distribuição de quinhões dos bens da falecida mãe, ou seja, trata-se da partilha causa mortis, conduzida de forma particular, não convencional, sem a prévia interferência de um representante judicial, no caso um partidor. Para a efetivação desse procedimento simplificado é indispensável  que não haja incapazes (civilmente) interessados e que a repartição dos bens  seja o resultado de consenso, após a apresentação e discussão das pretensões de cada interessado.

Exatamente nessa apresentação e discussão dos pontos de vista de cada uma das quatro filhas é que está o fio condutor do filme, porque os objetos trazidos à geral consideração suscitam o afloramento de mágoas, frustrações,  recalques e atritos  que levaram à situação de desarmonia e isolamento das personagens, entrincheiradas em seus preconceitos e pontos de vista.

Isso quer dizer que o desenvolvimento dos debates em torno dessa partilha, tecnicamente amigável, desencadeou as tempestades interiores e fez  colocar para fora as recíprocas simpatias e antipatias, as agressões e as cobranças de passadas atitudes. O resultado final é altamente positivo, catártico mesmo.

De qualquer modo, ainda após a celebração da paz doméstica através de mútuos perdões, o valor legal daquele acordo celebrado entre as partes, quanto à destinação dos objetos e quanto ao valor apurável com a venda de um imóvel, ficaria na dependência da lavratura de um instrumento público reduzido a termo nos autos do inventário ou ainda através de escrito particular homologado por juiz.

Dessas tecnicalidades não tratou Miguel Falabella, muito mais interessado na homologação das particulares opções sexuais e sentimentais das irmãs e dos demais envolvidos na trama.

 

DOS ANTÚRIOS DE MUITA BELEZA

Casa Branca, cidade tão próxima e muito querida por todos nós, goza de justa fama entre outras razões pelas suas jabuticabas de insuperável aspecto e sabor. As frutinhas de lá têm tanta negrura e tanta doçura, que até mereceram figurar no brasão e na bandeira, conforme pude comprovar no agradável livro O Município de Casa Branca, de autoria do amigo e colega de magistério Geraldo Majella  Furlani, companheiro no “Alexandre Fleming”, de Vargem Grande do Sul, e em nossa Faculdade de Filosofia. Quem me deu de presente um exemplar da segunda edição (2003) foi Sérgio Argeu Scacabarrozzi, ex-aluno e casa-branquense muito dedicado..

Mas não é das jabuticabas que quero falar, e sim dos antúrios, mais precisamente de uns colossais e coloridíssimos antúrios que minha finada tia cultivava no quintal de sua mais que secular casa, com todo o jeito de chácara, ali a uns passos da praça central.

Obedecendo a rigoroso cronograma, um grupo de amigos lá se reunia para travar renhidas batalhas no jogo de buraco. Não era fácil ser aceito naquela seleta companhia, por certo muito mais exigente do que o nosso desorganizado Centro Cultural Batista Folharini. Daí a alegria do médico recém-chegado a Casa Branca que, não tendo ainda a agenda cheia, podia dar-se àquele inocente prazer, porque ao que tudo indicava, só se jogava no mais puro leite de pato.

Nos intervalos da jogatina, os frequentadores do pano verde, como Rui Barbosa gostava de denunciar, iam esticar as pernas no quintal imenso e muito bem cuidado. O médico deve ter ficado mesmo maravilhado com tudo o que viu ali, mas se impressionou sobremaneira com os antúrios em sua obscena beleza. A certa hora, perguntou em voz alta à minha tia, que tinha lá seus repentes do mais puro desbocamento:

- Dona Madalena, qual o segredo da vivacidade das cores desses antúrios?

Naturalmente ele queria apenas uma explicação viável, como a fertilidade do solo, a constância do trato, quem sabe até a pureza dos ares, uma receita secreta, coisas assim. Mas minha tia achou que a curiosidade dele merecia melhor explanação. Chegou perto dele e lhe cochichou ele nem imaginaria o quê.

O médico arregalou os olhos, raspou a garganta, ficou muito desenxabido e tratou logo de mudar de assunto. Os assistentes da cena fizeram de conta que nada viram, nada ouviram.

Eu sei o que minha tia lhe disse ao pé do ouvido, porque ela já me dera a impudica e fantasiosa explicação, mas se eu a contar, a historinha perde toda a sua aura de inocente mistério.

 

DA ECONOMIA  LEVADA MUITO A SÉRIO

Nem podemos imaginar a que ponto chega o pão-durismo, a muquiranice, a avareza. Disso há exemplos universais, nenhum deles melhor do que o do Sr. Grandet, personagem do livro clássico francês Eugénie Grandet, do insuperável Balzac. Na hora de receber a extrema-unção, o velho ficou extasiado não com qualquer antevisão do paraíso, mas com o brilho da cruz que o sacerdote lhe apresentava para beijar. E morreu com a mão estendida, querendo tomar para si  o dourado objeto e murmurando ouro!...ouro!...

Tive um primo, já falecido, capaz de economizar (desnecessariamente, explique-se) até na ração diária de cigarros. Trabalhando em lugar sujeito a incêndio, acostumou-se a fumar somente à noite. Eram dois, não mais que dois cigarros, tragados prazerosamente, enquanto dava suas voltinhas burguesas em companhia dos colegas de sempre.

Ora se deu que num desses momentos peripatéticos, meu primo foi tirar do bolso da camisa o primeiro dos dois cigarros e, que tragédia! – ele escapou-lhe da mão e foi cair dentro de um bueiro, desses bem fundos e protegidos com reforçadas grades de ferro. Fez-se de tudo para resgatar o precioso objeto de desejo, mas em vão.

Felizmente meu primo encontrou solução para a inesperada perda. Dirigiu-se a um dos companheiros fumantes e lhe fez circunstanciada exposição assim resumida:

- Você bem sabe que trago meus dois cigarros, sempre. Você bem viu o que aconteceu com um deles. Um acidente.  Só existe uma saída – você me dar um dos seus.

- Tudo bem. Eu lhe empresto um e amanhã você vem com três deles.

- Não! Isso não! Eu peço que você me dê um dos seus, porque de outro modo minhas contas ficarão muito atrapalhadas!

 

VIVENDO IRMÃMENTE

Existem vocações muito fortes para tudo, desde profissões sonhadas e alcançadas ao custo de todos os sacrifícios, até irresistíveis tendências de não casar. Não são raros os casos de celibatários convictos, capazes de rejeitar “desejados tálamos”, na linguagem caprichada de Camões.

Um amigo de meu pai era assim, embora não dispensasse uma boa companhia feminina. Resultado: um longo namoro acabou virando coabitação informal, cada vez com menos sinais exteriores de afeto. Não iam juntos a lugar nenhum, ou seja, comportavam-se como a maioria dos casados faz.

Passaram-se anos, o amigo de meu pai manteve-se numa vidinha boêmia quase inocente; sua companheira continuou costurando, sempre residindo na casa do, digamos, noivo eterno.

Até que ele teve um infarto daqueles e se foi, sem essas nem aquelas.

A companheira manteve-se na casa onde viviam, porém, pressionada pelos parentes dele, herdeiros naturais do tio solteirão, teve de se mexer.

Alguém a orientou a ingressar em juízo, pleitear a aposentadoria do finado, legitimar a posse da casa de morada. Para isso lhe arranjaram advogado dativo, que nem se preocupou em instruir com mais cuidado a sua constituinte, tão líquidos e certos lhe pareceram os direitos da viúva de fato.

Infelizmente as pretensões dela não prosperaram porque no início da audiência o juiz lhe perguntou:

- A senhora conheceu bem o Sr. Fulano?

- Sim, conheci.

- Teve constante relacionamento com ele?

-  Sim, tive.

- E como era esse relacionamento?

- A gente vivia muito bem, como dois irmãos.

- Sempre como dois irmãos?

- Sempre como dois irmãos.

Nada mais havendo a tratar, o juiz deu por encerrados os trâmites e não se falou mais no assunto. Ela acabou morrendo com dificuldades de manutenção, por excessivo amor às aparências sociais, a que ninguém dá a mínima.

 

17/09/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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