Como quer o seu?

 

não é sempre que faço isso, mas um dia destes – manhã de sol agradável --, dei um longo passeio pelo cemitério velho, lendo uma inscrição aqui, lembrando uma fisionomia ali, ligando um fato a outro, mais além. Como se conhece gente que morreu! Como se lembram episódios de tantas vidas, decorridas embora décadas e décadas Quanto assunto bom para crônica, conto, até romance de folhetim... Vem inevitável à memória o  “Flor, telefone, moça”, de Carlos Drummond de Andrade, e todo o sofrimento causado pelo gesto automático de arrancar uma flor do túmulo de alguém.

Houve tempo em que eu ia mais, interessado também na beleza de algumas construções, na variedade das flores, naquela paisagem ao fundo, o rio, as montanhas, o céu azul. Tirei muitas fotos que ilustram a possibilidade de terem os finados rio-pardenses visão das mais privilegiadas, algo como uma pré-estréia do paraíso.

Pouco se vai a cemitérios, como se assim as pessoas pudessem afastar de si mesmas a idéia de que mais dia, menos dia... Conheço muitas que faziam essas visitas com  regularidade. Às segundas-feiras, por exemplo, senhoras iam rezar pelas almas do purgatório, depor suas flores, acender suas velas ou na sepultura de específico defunto ou exercitar sua devoção no atacado, quer escolhendo o cruzeiro defronte à capela de São Miguel Arcanjo, quer abrigando-se dentro dela, em silêncio e reflexão.

Os epitáfios deste cemitério são quase todos sem imaginação, repetitivos, mal se resumindo em palavras de saudade e desconsolo que em muitos casos sabidamente não resistiram à passagem do tempo, e olhe que não foi preciso tanto tempo. Viúvos inconsoláveis segundo as mensagens que mandaram gravar nas lápides das falecidas, logo-logo se reconciliaram com a vida e com o amor, pintaram os cabelos, murcharam as barrigas, reformaram o guarda-roupa e partiram para outra, com a aprovação (ou não) dos filhos, dos parentes mais próximos, alguns temerosos de golpes do baú desferidos por mulheres de diferentes atrativos, mas jovens, bem mais jovens do que os noivos repentinamente em flor. Viúvas com cara e jeito de muito vocacionadas para o novo estado, de repente, não mais que de repente, como que pediram perdão tácito aos falecidos e se acharam no justíssimo direito de recomporvida, dando adeus à solidão e ao tédio e se casando de novo, quase sempre com viúvos em bom estado de conservação.

Há algumas frases bonitas, originais, organizadas especificamente para ali figurarem. É o caso de pequena peça de mármore branco que guarda a autobiografia condensada e otimista do Prof. Benedito de Andrade: “Amou tudo e a todos. Foi um homem feliz”.

Estão disponíveis na Internet muitos epitáfios, em que tanto se deplora a morte de alguém, como se critica, se desabafa, se fala uma verdade crua, dolorosa ou não:

 “Aqui jaz minha sogra Gustava Gumersinda Gusmán (1934 –1989). DescansO em paz...”

Aqui descansa Pancrácio Juvenales (1967-1993). Bom esposo, bom pai, mau eletricista doméstico”.

“Anastácia Dolores de Camilo (1935 – 2002). Recordação de todos os teus filhos (menos de Ricardo, que não deu nada).”

Em epitáfios há de tudo, sejam eles de autoria dos próprios usuários, sejam da lavra de amigos/ admiradores/ inimigos/ invejosos/ escritores profissionais. Têm sempre algo em comum, são inesperados.

O marquês de Sade, conhecido pelo prazer demoníaco de fazer sofrer almas inocentes, dá a entender que gostaria de ter ficado por aqui muitos anos a fio: “Se não vivi mais, foi porque não me deu tempo”. Um sadista legítimo, com tendências ao masoquismo.

Molière, junto com Racine, responsável pela glória perene do teatro francês, a partir do que quis escrito em sua tumba, dava-se muito mais valor como intérprete do que como autor de peças: “Aqui jaz Molière, o rei dos atores. No momento se faz de morto e na verdade o faz muito bem”.

Quando li a transcrição do epitáfio de túmulo de propriedade de  Lord Byron, o romântico poeta inglês que acabou morrendo de febre pela liberdade dos gregos na luta contra os turcos, o que me veio à mente foi mesmo sua aura de boêmio incorrigível, dândi, esnobe a não mais poder. Foi então que, parafraseando reflexão de nosso ilustrado presidente da República, percebi que eu tinha caído do cavalo. Está escrito: “Aqui repousam os restos de um ser que possuiu a beleza sem a vaidade, a força sem a violência, o valor sem a ferocidade e todas as virtudes de um homem, sem seus vícios”. Excesso de auto-estima, resvalando perigosamente pela cabotinice? Não. As belas palavras são a homenagem de Byron a seu  fiel cão Botswain!

Então encontro num livro o verdadeiro e último desejo de Byron: “Meu epitáfio será meu nome, e apenas meu nome. Se ele não puder coroar honrosamente minhas cinzas, ah!, que nenhuma outra glória recompense minhas ações! Meu nome, meu nome, ele, ele, designará  o lugar célebre por este nome ou como ele perdido.” Faz sentido, não?

Nem sempre as frases das lápides podem ser classificadas de lapidares, principalmente se não forem autobiográficas, mas apenas a síntese de certas observações alheias sobre pessoas e profissões, genericamente consideradas:

Do perfeccionista: “Onde foi que errei?”

Do sem-terra: “Até que enfim!”

Do hipocondríaco: “Eu acreditava na doença!”

Do corrupto: “O pior é que não estou  levando nada nisso...”

Do preguiçoso: “Deitado eternamente”.

De Catulo da Paixão Cearense, bolado por Mário Quintana: “Catulo não morreu: luarizou-se”.

De um banqueiro: “Aqui nãooperações de risco!”

De um bicheiro: “Deu zebra”.

De um obstetra: “Parto sem dor”.

De um trapezista: “O número não estava bem ensaiado”

De um médico: “Este é um exercício de autocrítica”.

É da natureza do epitáfio resguardar/ressaltar/inventar as boas qualidades dos falecidos. Tanto que, depois de ler   frases elogiosas, a garotinha de seus doze anos indagou do pai: “ Em que canto deste cemitério estão enterradas as pessoas más?” Tem sua lógica, não?

São duas as alternativas para encerrar esta crônica, e durante algum tempo não soube em que ordem as colocaria. Vá , pela ordem crescente da verdade:

Se você tiver um tempinho, leia no cemitério velho o epitáfio dedicado ao combativo jornalista Paschoal Artese, provavelmente de autoria de seu filho mais afetuoso. Entre outras coisas, está assentado , no bronze perene, que o velho Artese foi o responsável pela glória nacional de Euclides da Cunha, porque tirou Os Sertões do cebo (sic). (Por coisas assim é que uma das mais consultadas fontes da degradação do Latim Clássico residia exatamente nas inscrições tumulares, pelo grosseiro estropiamento das palavras e das idéias...)

Encerro mais solenemente o assunto transcrevendo o auto-epitáfio de Miguel de Unamuno, ilustre pensador espanhol. É um legítimo ato de contrição: “ peço a Deus que tenha piedade da alma deste ateu”.

 

17/09/2005
(emelauria@uol.com.br)

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