Coisas da idade
VELHINHO MALTRATADO Quem me contou este caso é pessoa acima de qualquer suspeita e muy amiga do velhinho envolvido. O tal velhinho, passante já dos oitenta, come bem, dorme bem, anda melhor ainda. Enquanto o objetivo da maioria do pessoal de sua faixa etária é conseguir caminhar a duras penas quinhentos ou mil metros por dia, esse privilegiado das idades e das procelas vence a passos largos, todos os dias, ao menos cinco quilômetros. Isso quando não resolve exagerar e cair na estrada, rumo a São Sebastião da Grama, dezesseis quilômetros adiante, para visitar a irmã. Em manhã não muito distante, estava ele praticando o seu cooper reduzido na Avenida Perimetral, uns sete quilômetros, se tanto. Nisso, um conhecido seu, querendo fazer gracinha com ele, fingiu que iria atropelá-lo com o carro e tirou uma fina em suas pernas. Em seguida, parou para se identificar e apreciar os efeitos do susto dado. Tudo brincadeirinha. Uma senhora que a tudo assistira, ficou indignada com o quase-atropelamento e disse o diabo para o aparentemente desastrado motorista: - O senhor devia ter cassada sua carta! Onde já se viu colocar em risco a vida de uma pessoa de tão avançada idade? Ele pode ter um ataque cardíaco! Podia ter caído duro porque o senhor não respeitou seus direitos abrigados no Estatuto do Idoso! De nada adiantaram as explicações do quase-atropelador e de quase-atropelado. - O senhor é um irresponsável! Estou com vontade de ir à polícia e registrar um B.O. contra o senhor. Em que país estamos? Ora... ora... Um ancião nem pode andar sossegado pela via pública? Já se viu... Não sei se o incidente teve algum desdobramento. Conhecendo como conheço as reações do indigitado velhote, imagino que no dia seguinte ele deva ter caminhado uns vinte quilômetros, só para desmentir os vocábulos depreciativos de sua capacidade física que a boa senhora lhe sapecou e para tapar a boca daquele seu muy amigo, que cada vez que conta o conto à sua numerosa plateia, aumenta vários pontos.
UMA BOA AÇÃO De volta da escola, o menino de seus oito ou nove anos estava feliz da vida e louco de vontade de contar em casa a boa ação que praticara. - Sabe, mãe, hoje ajudei uma velhinha a atravessar a rua, num lugar muito movimentado. - Que bom, meu filho. Devemos sempre auxiliar as pessoas idosas.E ela te agradeceu, não é? - Agradeceu nada. Ela me deu foi muito trabalho porque não queria atravessar de jeito nenhum!
LIÇÃO DE BOM-TOM Nosso professor de Ciências Naturais na terceira e quarta séries ginasiais do “Euclides da Cunha” era o Dr. Neje Farah, médico bem conceituado e figura humana muito simpática. Para nós, de treze ou quatorze anos, quem passasse dos quarenta era tido como velho, velhíssimo. O Dr. Neje devia ter isso. Foi daí que passou pela cabecinha oca da Clélia aquela curiosidade incontrolável de perguntar a idade ao professor: - Dr. Neje, o senhor pode tirar aqui uma dúvida? - Pois não! – naturalmente pensando numa pergunta sobre as propriedades organolépticas da água ou sobre a função da vesícula biliar. Bem diferente o que veio: - Quantos anos o senhor tem? O professor quase caiu das pernas, mas se controlou: - Minha filha, eu sou velho, muito velho... Sou do tempo em que era falta de educação perguntar a idade das pessoas... Até hoje me pergunto aonde foi que a estabanada Clélia enfiou a cara e como é que sua mãe, de finura aristocrática, tratou a inesperada questão.
NOVA DOENÇA DE VELHOS Circula por aí um texto que fala de uma nova doença de velhos – a sefoia. Sintomas: Uma xicrinha de café te dá insônia; uma cerveja te prende no banheiro; tudo te parece muito caro; qualquer barulho te incomoda; um docinho mínimo te engorda; numa festa pedes a mesa mais longe da orquestra e das pessoas; amarrar os sapatos te dá dor nos quadris; um nadinha de sal te aumenta a pressão arterial; vinte minutos em frente à TV te dão sono... Se tens ao menos cinco desses sintomas, estás com a tal sefoia, ou seja, SE FOI A mocidade...
A COLEGA QUE NÃO EMBRANQUECEU Comemorava-se data redonda da formatura daquela turma tão grande e tão amiga. Quarenta, talvez cinquenta anos. Antes do almoço festivo, aqueles longos abraços, beijos estalados, recordações que afloravam, novidades boas, novidades más, espantos fisionômicos, descobertas, surpresas, risos, lágrimas... O tempo não tratara por igual aqueles senhores e aquelas senhoras caminhando freadamente para a velhice assumida. Uns demonstravam o peso dos anos, as trabalheiras familiares, as dificuldades profissionais. Outros (ou melhor, outras) lembravam aqueles prédios antigos, firmes, porém com inevitáveis sinais da passagem das décadas de uso. Pois foi um desses prédios antigos, isto é, uma daquelas ressoladas senhoras que, vendo um colega de cabeça completamente coberta pela neve do tempo, não resistiu e exclamou: - Puxa, meu amigo, como você embranqueceu! O encanecido e cabeludo senhor pareceu não saber como responder. Depois de rápido silêncio e de acurado exame na cabeleira negra como a asa da graúna, ostentada pela colega, achou as palavras exatas: - Você também... Você também... Ela sentiu o golpe. Só restou a ela lhe devolver: - Você continua chato, muito chato!
VOCÊ FALA COM ELE MESMO Esta aconteceu comigo, quando tive o prazer de lecionar na Faculdade de Direito da Fundação Octavio Bastos, de São João da Boa Vista, entre 1993 e 1996, a convite de meu amigo Celso Ribeiro da Silva. Era uma turma interessadíssima que estudava no período vespertino. Terminada uma das aulas, chegou-se a mim uma bela jovem, que se apresentou como sendo de São Sebastião da Grama. - Minha avó, que estudou em São José do Rio Pardo há muito tempo, disse-me que lá teve aulas com um professor de nome igualzinho ao seu. O senhor o conheceu? - Claro que eu o conheci... - Era parente seu? - Não, era eu mesmo. Você está falando com ele... Ela ficou muito sem jeito, não sabia o que dizer daquela longevidade profissional. Aí pensei comigo: “Quem manda lecionar por tanto tempo?” Fiz os cálculos: tendo começado em 1950 (cheguei a dar aula com a farda do tiro-de-guerra), já passava, então, dos quarenta anos de magistério. Nem por isso, porém, parei de vez. Em 2002, ao atingir os setenta anos, afastei-me compulsoriamente da Faculdade de Filosofia. Continuei na UNIP até 2008. Considerando aulas particulares que dei (o Flávio Eduardo Godoy está aí vivo e são para confirmar), lecionei durante sessenta anos seguidos. É chão!
17/07/2010
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