IDAS AO CRISTO
Naqueles recuados dias de ginásio, professor que se prezasse não perdia tempo durante horário de serviço. E não perder tempo significava dar aula, sempre. Não só não faltar, mas fazer a matéria render, vencer os rígidos programas elaborados (pasmem!) pela congregação de professores do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, estabelecimento tomado como obrigatório padrão em todo o País.
Daí nossa surpresa quando o Prof. Odilon Machado César, de Geografia, avisou que na tarde do dia seguinte os alunos do curso ginasial iriam fazer uma excursão. Mais não foi dito, mais não foi perguntado. Era 1944 e estávamos na 2.ª série.
Aquele bando alegre de meninos e meninas, desacostumado de qualquer quebra na rotina escolar, achou uma beleza sair por aí, acompanhado pelo professor, fiscalizado por severos inspetores de alunos e descer para os lados da estação ferroviária da Mojiana, atravessar a ponte de Euclides, enveredar pela principal rua do bairro do Santo Antônio. Até ali, tudo bem, só tínhamos descido ou caminhado em terreno plano. Então começou a subida, cada vez mais íngreme.
Passamos, a meio caminho, pela casa de José Roberto Schiezaro, colega de classe, e ficamos pensando na distância que ele percorria mais de uma vez por dia, a pé, para ir ao “Euclides da Cunha” ou ao campinho do Rio Pardo Futebol Clube, aqui na Siqueira Campos, onde o Prof. Jorge Luís Abichabcki dava suas aulas de Educação Física, seção masculina. E continuamos a subir a empoeirada rua logo reduzida a estradinha rural, até que veio a nova ordem: devíamos caminhar por uma trilha, dentro de um pasto, à esquerda, e subir, subir aquele morro que de repente parecia empinado e sem fim. De vez em quando, parávamos e olhávamos para trás: víamos grande parte da cidade e seus generosos espaços ainda vazios. Na extrema esquerda, a igreja de São Roque; depois as costas da arquibancada da Associação, com umas letras bem grandes – AAR - ; o Hotel Brasil, o chalé de Oliveiros Pinheiro, a Igreja Matriz, o Orfanato, o prédio do “Euclides da Cunha”, a Santa Casa... O mais, as casas baixas, muitos pastos e suaves montanhas circundantes, ao longe.
Aqui mais perto, o rio Pardo sinuoso, a ponte metálica, os trilhos da estrada de ferro, a estação, o cemitério com suas sepulturas ou brancas ou azuis. A igreja de Santo Antônio. Muitas árvores, chácaras, quintais.
Enfim chegamos ao topo, ofegantes, as pernas doendo com o exercício puxado. A vista era encantadora, em qualquer direção que olhássemos. A cidade se apresentava quase que por inteiro, oculta apenas a dobra da colina, em que ficam ruas como a Benjamin Constant, a Silva Jardim, a José Teodoro.
Ninguém tinha binóculo, mas com esforço e um pouco de imaginação era possível localizar a casa deste ou daquele (a minha, inclusive), o rio serpeando em generoso vale, os cafezais que vinham até ali perto, encosta acima.
Mas por que aquele passeio tão inesperado? Porque o Prof. Odilon queria verificar com seus alunos o resultado concreto de uma campanha em que ele estava muito empenhado – no alto daquele morro que dominava sobranceiro a cidade toda, a ereção de uma estátua que lembrasse a do Cristo Redentor, do Rio de Janeiro. Não tão grande quanto aquela, nem tão luxuosa no acabamento de granito escuro. Feita de concreto, pintada de branco, seria iluminada à noite e teria dezessete metros de altura, a segunda do Brasil. Aí entrava a grande contribuição do mestre de Geografia. Por que dezessete metros e não vinte, por exemplo? Porque ele queria que cada metro representasse uma letra do nome da cidade. Cinco seriam do reforçado pedestal que abrigaria uma capelinha. Doze, da imagem. E ali estavam, para todos nós vermos, as partes desmontadas, cabeça aqui, braços ali, o tronco mais além. Pernas não, porque uma túnica, também ali repartida em seus fragmentos, cobriria o corpo todo, mal deixando aparecer as sandálias e os dedos dos pés de Cristo. A imagem havia sido feita em Campinas, sob a responsabilidade do construtor Papaiz, trazida de trem e depois para o alto em lombo de burro.
Tudo isso pudemos saber ali, no topo do morro, em longínquo dia de 1944. As informações sobre o tamanho da imagem e seus simbolismos o próprio Odilon Machado César me confirmaria tempos depois, no longo convívio que mantive com ele – aluno por mais cinco anos, até 1949, e colega por largo tempo, até sua aposentadoria. E nunca esconderia sua admiração por Manuel de Sousa Rosa, um português muito religioso que não só doou o terreno para a ereção do monumento, como contribuiu de forma decisiva na campanha da coleta do dinheiro destinado ao apressamento das obras. Quando tudo ficou pronto, veio até o bispo diocesano (de Ribeirão Preto) celebrar missa no local; as autoridades descerraram vistosa placa de bronze que cometia injustiça com Manuel Rosa, não destacando seu trabalho incomparável naquele projeto. Mas o povo acabou corrigindo tudo com as próprias mãos: dias depois, alguém sumiu com a tal placa, que nunca foi encontrada, quem sabe ainda jazendo no fundo do rio Pardo.
Um autodidata o Prof. Odilon. Veio para São José exercer sua profissão, dentista. Chegou a ter consultório, mas acabou optando pelo magistério. Foi candidato de primeira hora a dar as aulas de Geografia no então recém-inaugurado Gymnasio do Estado “Euclydes da Cunha”. Contratado interinamente como todos os seus colegas de magistério, apaixonou-se pela matéria que acabou dominando com prazer. Saiu-se muito bem já no primeiro concurso que houve para provimento efetivo do cargo (1943) e escolheu permanecer em São José como professor catedrático (era título honrosíssimo), embora pudesse remover-se para cidades maiores ou até voltar para sua Pindamonhangaba. Além de bom expositor (com exagerada admiração pelos Estados Unidos), excelente desenhista, cartógrafo de primeira. Notáveis os mapas que traçava à mão livre na lousa. Inventou e patenteou um curioso diagrama para facilitar aos alunos a confecção do mapa do Brasil. (Cada coisa que se ensinava então!) Também inventou e patenteou uma prática tira móvel que, acoplada a um mapa-múndi que tivesse os meridianos, permitia, quando bem manuseada, determinar as horas nos mais variados pontos da Terra... Desenhou e fabricou industrialmente em madeira diversos tipos de brinquedos. Sua fabriqueta, de curta existência, recebera o nome da esposa.
Terrível acidente modificou de modo radical a sua vida. A mulher, Inah Rollim César, minha temporã colega de turma na Escola Normal, teve morte dolorosíssima. Ao atravessar despreocupada a pacata Rua 13 de Maio, entre a residência da família e a Escola de Comércio, foi atropelada por um veículo e jogada no canteiro central sobre as pontiagudas ripas que protegiam umas plantinhas recém-semeadas ali.
Depois disso, o Prof. Odilon perdeu muito de sua alegria, aposentou-se e acabou mudando-se para São Paulo. Voltou a São José uma ou duas vezes, chegou a almoçar aqui em casa. Outro golpe foi o suicídio de um dos filhos.
Quase cego, de coração combalido, o velho professor telefonou-me um dia, de São Paulo. Em sua voz distante e enfraquecida, eu pude ainda perceber a sua profunda saudade por esta sua terra de adoção, onde conheceu contrastes extremos da ventura e do sofrimento. Dias depois morreria.
Estas coisas me afloraram à memória um dia destes em que fui sozinho ao morro do Cristo. De lá, o panorama continua naturalmente encantador, com as longínquas montanhas azuladas e o céu amplo. A cidade é que cresceu, dominou colinas e vales, expandiu-se para bem longe. A Matriz , de 1944, elegantíssima, projeto de Ramos de Azevedo, foi posta abaixo e substituída pela atual, que majestosa domina a praça, mas já não é a maior massa arquitetônica da cidade.
Bem diferente daquela de 1944 a subida a pé até o alto do morro. Melhor ainda ir de carro por estradinha de asfalto recente. Tudo convida à observação, à calma, à reflexão. É turisticamente local privilegiado que precisa de constante cuidado e de permanente vigilância.
Um bem público de sua expressão não pode correr o risco de cair em mãos erradas, como as de desocupados, vândalos ou drogados.
____________________________________________________________________________ Informações talvez necessárias: - a 2.ª série ginasial correspondia cronologicamente à atual 6.ª do ensino fundamental; - a Rua 13 de Maio só terminava na Santa Casa; a denominação dada a um trecho de Avenida Deputado Eduardo Vicente Nasser é bem mais recente; - a Escola de Comércio ficava no prédio em que funcionam os cursos da Fundação Educacional; - a casa de residência do Prof. Odilon é hoje ocupada por uma firma de informática. Ele mesmo elaborou a planta, em estilo colonial mexicano. Tinha na sala de entrada uma lareira que ostentava orgulhoso brasão da família César. ____________________________________________________________________________
17/07/2004 |