Crônicas
Márcio José Lauria

A quem aproveita?

A crítica não morreu de amores pelo recente filme dos estúdios de Walt Disney, Os Incríveis, mas o público sim. E não apenas o público infantil, porque pessoas de excelente nível cultural logo perceberam naqueles truques de computador uma imaginosa alegoria do cotidiano familiar vivido por pai, mãe e três filhos, todos destituídos de seus outrora infalíveis superpoderes.

O Sr. Incrível dispunha da  majestosa força física; a Sr.ª Incrível era de notável elasticidade; a tímida menininha de doze anos tornava-se invisível quando bem quisesse; o filho do meio corria a incríveis velocidades; o caçula, ainda um bebezinho apenas comilão, não tivera tempo de revelar nenhum dote extraordinário.

Não há espectador que não comente como cada personagem se adaptou à vidinha de pessoas comuns. Nenhuma, porém, pareceu ter encontrado meios de melhor sobreviver do que a mãe de família, facilmente tomada como símbolo da mulher contemporânea em sua dura e constante luta diária. Tendo perdido a elasticidade de heroína, conseguiu jeito de conciliar todas as suas obrigações no mundo atual. Ou por outras palavras, mesmo deixando de ter superpoderes, precisou continuar elástica, principalmente porque não se contentou em  exercer os papéis secundários que a sociedade tradicional  lhe reservava. Não desejando, porém, exonerar-se desses papéis, foi encontrando forças para assumir outros, ainda que enfrentando críticas veladas ou abertas, formuladas por representantes de uma concepção social repressora e cobradora, tendo à frente pai, mãe, marido, filhos carentes.

Minha mulher, que foi mãe de cinco filhos enquanto lecionava em escola pública fundamental, sempre se refere, sem maiores aprofundamentos ou mágoas, à concepção de vida feminina que o pai dela  resumia numa frase:

-- Não quero que minhas filhas se formem professoras porque mulher que tem bom ordenado só atrai marido chupim...

Era o ponto de vista de um respeitável senhor nascido no final do século XIX e que conhecia um ou outro caso de homens boêmios e bonitos, teúdos e manteúdos  por  professoras sem maiores atrativos pessoais, mas afetivas/efetivas provedoras das necessidades econômicas da família. A generalização era, contudo, injusta, preconceituosa e não coube, de modo algum, a suas filhas e a seus genros. Além do mais, ordenado de professora perdeu muito de poder aquisitivo...

Em tempos recentes, a participação feminina no campo de trabalho e na disputa dos melhores cargos assumiu outra profundidade, porque, contrariamente ao caso da maioria das professoras da geração de minha mulher, já não se tratava de ficar meio período fora de casa. O acesso à formação e especialização universitária e a adesão de muitas delas às novas concepções de erotismo deram outro sentido à luta das mulheres na  ampliação de seus direitos: saíram do universo doméstico e do exclusivo cuidado dos filhos. Elas passaram a exigir presença no espaço público, antes dos homens.

Quem não percebe como a conquista de novos lugares e novos papéis femininos trouxe a elas notáveis ganhos? Não a baixo preço – reconheça-se.O que fundamentalmente mudou nessas corajosas mulheres foi a transformação de seus ideais, às vezes com o ostensivo abandono de interesses antigos e a descoberta de outros deles, de difícil acumulação. Presas à necessidade de corresponder ainda aos reclamos do âmbito doméstico, recai sobre as costas delas  a soma de compromissos de várias ordens, tudo a requerer uma elasticidade até antes sequer imaginada.

Tomando conhecimento da carga de tarefas, horários e funções de uma estudiosa de minha família, posso ver nela uma reprodução da Sr.ª Incrível, na busca do sucesso profissional planejado, por vezes em detrimento de ideais de outros tempos – afogados no embate da dura realidade.

Mas não é da árdua carreira de minha parenta doutora em Letras que quero falar. Com sacrifício do convívio doméstico, do lazer e das horas reservadas ao estudo reflexivo, ela dá conta de seu oneroso dia-a-dia de esposa, mãe, professora, orientadora de escolas,  escritora de obras didáticas, julgadora de concursos públicos. Quero, isto sim, crer como será difícil manter por tempo considerável  essa elasticidade que não se esgota na relação por vezes conflituosa entre vida doméstica e vida cultural. Não terá sentido para nenhuma dessas bravas lutadoras contentar-se apenas com isso. Inevitavelmente, a luta feminina por um espaço no âmbito de hegemonia masculina abre para a mulher-elástico uma outra faceta do ideal: a manutenção da higidez do corpo, tomado então como o sinal exterior de sua vitória frente ao mundo. Para corresponder às inúmeras demandas de sua concepção de vida, além de pessoa dedicada, compreensiva e espirituosa, deve conservar-se sempre jovem, no sentido mais amplo do vocábulo. Com obstinação igual àquela que demonstra quando voltada para o estudo, para a busca do conhecimento, há os exercícios físicos de preservação de uma aparência que se quer infensa à passagem dos dias, há as privações alimentares, há as  inevitáveis correções cosméticas e plásticas,  sem o que não faz sentido a manutenção de tanto interesse nos destinos da própria humanidade. De que valeria ganhar o mundo e perder-se a si mesma?

Atingirá o máximo de seus ideais se conseguir ser magra, não dessa magreza burguesmente aceita, mas a magreza hipervalorizada nos desfiles de moda, porque a mulher-elástico sabe da relação entre auto-estima e imagem de corpo esguio. Para desânimo de tantas, há pouco mais de vinte anos as macérrimas modelos dos estilistas internacionais eram apenas oito por cento mais secas do que a média feminina. Hoje, a diferença chega a vinte por cento. Além do mais, as top models começam e terminam   profissionalmente cedo – entre dezesseis e trinta anos -- , ao passo que as bem-sucedidas executivas esperam atingir o auge da carreira depois dos quarenta...

Que saudades muitas delas não devem ter  dos padrões estéticos visíveis nos  corpos fartos do Renascimento, nos quadris grandes e avantajados das pinturas célebres de outros séculos!...

Descoberta fatal: de repente, a dolorosa sensação de que algo lhe escapou no meio do caminho. Para que tudo isso? Ou como diziam os romanos: Quid prodest? – A quem aproveita? A que sujeito se destinam todos os esforços realizados e, certamente, a quem se destinam também os prazeres das vitórias conquistadas?

As legítimas  mulheres elásticas só podem aceitar uma resposta: elas mesmas são as destinatárias de tanto esforço. A elas mesmas o prazer das vitórias conquistadas. Delas e para elas o testemunho da rebeldia que lhes orientou a vida e não raras vezes espalhou perplexidade à sua volta.

 (Artigo suscitado pela leitura da matéria “Mulher Elástico”, da psicanalista Maria Helena Fernandes, na revista “Viver Mente e Cérebro”, junho de 2006)

 

17/06/2006
(emelauria@uol.com.br)

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