Mais da memória euclidiana
Entre o ronco e a insônia Na década de oitenta, o euclidianismo em sua feição rio-pardense viveu fases de grande atividade, com várias cidades se interessando em promover cursos com a participação dos professores do nosso Ciclo de Estudos. Assim, Jundiaí, Campinas, Várzea Paulista, Botucatu, Lençóis Paulista, São Joaquim da Barra, entre outras, patrocinaram nossa presença e se esmeraram no oferecimento das melhores condições de trabalho e hospedagem. Nenhuma, porém, superou em atendimento Araçatuba, verdadeira capital de vasta região do interior paulista: as aulas foram dadas num excelente auditório do SESC, em prédio recém-inaugurado e dotado dos melhores recursos de som e imagem, além do indispensável ar-condicionado, já que a cidade é de calor quase permanente. Ficamos hospedados num hotel de categoria, dois professores por apartamento. Foi designado meu companheiro de acomodação Adelino Brandão, já residente em Jundiaí. Na primeira noite, bem que ouvi uns ruídos esquisitos, mas o cansaço acabou se impondo e dormi bem. Na segunda, depois de umas horas de sono, os ruídos esquisitos tomaram a nítida forma de roncos, partidos da respiração de Adelino, que dormia de barriga para cima, as pernas em nível elevado, envoltas em grossas meias – dados os seus problemas de flebite. Procurei ser paciencioso e compreensivo ao máximo, mas uma hora depois da inacabável sinfonia, resolvi despertar meu companheiro de jornada, primeiro falando alto, sacudindo-o. Depois, como recurso heroico, dando-lhe umas travesseiradas. Ele acordou meio assustado, percebeu logo o problema e me explicou que não poderia mudar de posição para dormir. E foi falando, puxando assunto sobre assunto e me espantando de vez o sono. Nenhum dos dois dormiu de novo. Nós nos levantamos cedo e bocejamos diversas vezes durante o dia. Felizmente, não houve a terceira noite.
Majella e sua memória Geraldo Majella Furlani, casa-branquense de nascimento e de coração, tinha (e ainda tem) vasto material fotográfico sobre a caatinga baiana, cenário da guerra de Canudos e parte fundamental de “A terra”, de Os sertões. A apresentação de eslaides explicados com clareza conseguia despertar o interesse do heterogêneo público do Ciclo de Estudos, ainda mais que Majella sabia de cor o trecho euclidiano que dizia respeito a cada fotografia exposta. Isso causava justa admiração. Decorrido muito tempo, há uns três ou quatro anos, sugeri à direção da Casa de Cultura Euclides da Cunha que convidasse o quase octogenário Majella a dar uma aula, usando os mesmos recursos de 1980 e poucos. Fiquei satisfeito de ver e ouvir meu amigo e colega, desde o Ginásio Alexandre Fleming, de Vargem Grande do Sul (anos 50) e da nossa Faculdade de Filosofia, expondo com firmeza e boa memória o que Euclides estudara da flora e da fauna da conflagrada região baiana. Mais uma vez o professor de Geografia e estudioso euclidiano demonstrou um conhecimento que não sei se teve continuadores dali para a frente.
DE NORTE A SUL Nossas Semanas Euclidianas têm recebido participantes de todas as partes do Brasil, não digo que do Oiapoque ao Chuí, mas ao menos de Fortaleza a Porto Alegre, isso não se contando os que, originários de diferentes pontos do País, acabaram radicados em São Paulo. É o caso de Adelino Brandão, de Belém do Pará, que dividiu sua vida de estudioso entre as cidades paulistas de Araçatuba e Jundiaí. * Sul-rio-grandense ( e não gaúcho, porque jamais cavalgara – essa a sua explicação) era Dante Pianta, assíduo frequentador das Semanas, como especialista na análise dos aspectos psicológicos da obra de Euclides da Cunha. Por razões de importância muito pequena, acabou se desentendendo com um diretor da Casa de Cultura e cumpriu promessa feita em momento de descontrole: jamais voltar a São José do Rio Pardo. Nem isso arrefeceu nossa amizade particular, alimentada sempre por cartas, por troca de fotos e livros e até por uma visita que lhe fiz, anos depois de seu desligamento de nosso euclidianismo. Pouco antes de morrer precocemente, telefonou-me em tom de despedida e me confessou como suas vindas a São José eram ansiosamente aguardadas e suas estadas verdadeiros oásis na aridez de sua vida de intelectual pobre e solitário. * Que me lembre, Carlos d’Alge, professor do curso de Letras e pró-reitor da Universidade Federal do Ceará, aqui esteve uma só vez e nos tirou de enorme enrascada, produto da sempre indesejada mistura de euclidianismo com política. É que no remoto ano de 1970 (já se vão quarenta e quatro anos!), o conferencista oficial de 14 de agosto seria o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, pessoa de raro prestígio pessoal num tempo de chumbo, de repressão das brabas. Gente que jamais havia assistido a uma palestra fazia questão de figurar entre os que teriam lugar assegurado no grande auditório da Associação, que jamais ficara lotado por causa de Euclides da Cunha, mas corria o risco de ser insuficiente para atender tanto prefeito, tanto vereador, tanto chefete político da situação. O então diretor da Casa devia contar com a possibilidade de um aviso de última hora que anunciasse a ausência do ministro, mas que poderia ele fazer? E de fato, lá pelas cinco da tarde foi confirmado que, por motivo alheio à sua vontade, Jarbas Passarinho não viria a São José. Foi um geral constrangimento entre os que, vindos de perto ou de longe, aguardavam a rara oportunidade de ficar cara a cara com alguém que participava da definição dos destinos do Brasil. E para nós euclidianos? Convidar quem? Achar quem, disposto a arriscar o prestígio intelectual, falando de improviso para um público tão desigual? Pois o intrépido português Carlos d’Alge dispôs-se a tanto. E, à hora marcada para a conferência do ministro, o salão caprichosamente decorado recebia uma pífia plateia para ouvir um palestrante-estepe. Quem assistira às intervenções de Carlos nas palestras da Semana Euclidiana sabia de seu valor como estudioso da literatura e por isso não temia sua sorte como conferencista. Elegante, experiente, dotado de superior autocontrole, ele deu à sua inesperada condição de sobressalente de ministro um caráter de esportividade desafiadora. Acabou prendendo o auditório, apesar de terem aparecido alguns retardatários desavisados que estranhavam tantos lugares vagos e perguntavam pelo ministro. Inteirados da situação, não faltaram os que saíram ostensivamente. Eu não soube mais nada a respeito de Carlos, mas para mim ele ficou marcado por sua coragem, por seu espírito de solidariedade e, principalmente, por haver provado mais uma vez como só o conhecimento profundamente sedimentado pode dar às pessoas a segurança de enfrentar com êxito as caprichosas ciladas que a vida prepara.
VISTO AQUI DO ALTO Isto que vou relatar ocorreu há mais de meio século e envolve duas personagens históricas de nosso euclidianismo: Oswaldo Galotti, o criador da própria Semana e Jorge Luís Abichabki, o padrão do esportista-educador: professor de Educação Física, técnico de futebol, delegado regional de esportes. Na concepção de Galotti, a Semana se apoiava num tripé: cultura, esporte e convívio social. Daí as palestras, conferências, maratona, disputas de tantas modalidades, festas, bailes, exposições de arte, apresentações musicais. Nesse trabalhado esquema, o desfile sempre teve papel preponderante, porque firmava as pontas do tripé e movimentava toda a comunidade. Para um estudante que desfilasse, ao menos cinco pessoas haviam trabalhado anonimamente, na confecção de vestimentas, carros alegóricos, cartazes, ensaios de fanfarras e sabe-se lá que mais. Quando estava quase terminado o desfile de um remoto dia 9 de agosto, subiu ao palanque o Prof. Jorge, visivelmente cansado depois de pôr em disciplinado movimento alguns milhares de pessoas. Foi muito cumprimentado, mas desabafou: - Você não imagina, Galotti, o trabalhão que dá um desfile desses. - Mas você, Jorgito, nem faz ideia de como tudo é maravilhoso visto aqui do alto...
Os dois sorriram e se abraçaram fraternalmente.
17/05/2014
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