Parole, parole; words, words
Não é nada fácil criar frases de efeito, umas poucas palavras que causem impacto positivo ou negativo no espírito de quem as lê ou escuta. Assisti à criação espontânea de uma delas. Um sujeito, meio boêmio e de inteligência aguda, foi felicíssimo na adjetivação de um amigo, normalmente desleixado, que naquela manhã surgiu na praça banhado, barbeado e de roupa limpa: “Puxa, rapaz, hoje você está bentrapilho!” * Não acredito naquelas frases que dizem haverem sido pronunciadas no leito de morte. Quase todos passam desta para melhor em estados de dor, de falência ou de inconsciência, com pouca ou nenhuma criatividade. * Fernando Pessoa, unanimemente considerado um português inteligentíssimo, a ponto de não caber em si mesmo e por isso ter inventado outras pessoas (os seus heterônimos) com biografias e pensamentos próprios, cunhou frases de superior efeito, como “Minha pátria é a língua portuguesa”. Jorge de Sena, compatriota seu, que lecionou Letras na USP e até proferiu aqui em nossa cidade conferência sobre Euclides da Cunha, a partir da frase de Pessoa radicalizou o assunto e proclamou aos ventos: “Eu sou eu mesmo a minha pátria”. Pensando bem, ele considerava-se muito mais patriota que Fernando Pessoa, porque sem nada dizer, sem nada escrever, podia sentir a pátria no próprio coração. * Outra inesgotável fonte de tiradas de efeito é o ato de ler, de escrever. Otto Lara Resende, escritor e jornalista mineiro, um dos quatro amigos que se reuniriam no belo romance O encontro marcado, de Fernando Sabino, faz estranha confissão sobre seus processos de aquisição cultural, provocando diferentes reações nos leitores: “Leio muito. Não sou inteiramente uma besta porque sempre tive insônia.” Muito original essa tirada de reunir falta de sono com aquisição de cultura. * Lembro-me bem das contraditórias reações que Renato Corte Real, fino humorista dos anos 60 e 70, provocou num seleto auditório rio-pardense durante uma distante Semana Euclidiana. Ele iniciou seu espetáculo de artista sozinho dizendo de sua satisfação em estar na terra em que Euclides escrevera Os sertões. O público ficou mais aceso ainda quando ele assegurou que o grande livro era um de seus prediletos. Ninguém imaginaria que um artista de rádio e tevê se interessasse pelo assunto. Aí ele, com toda a seriedade, explicou porque gostava tanto de Os sertões: “ É meu livro de cabeceira. Sempre que tentei lê-lo, nunca consegui passar da página cinco. Um santo remédio para insônia”. * Contou-me José Aleixo Irmão, promotor de Justiça, euclidiano ilustre, que terminou seus dias em Sorocaba: lá, um assinante do Estadão durante mais de cinquenta anos comunicou ao agente do jornal que não iria renovar a assinatura. O agente não se conformou com a perda e foi tentar demovê-lo da desistência: - O senhor é nosso assinante mais tradicional. Por que agora resolve não ler mais nosso jornal? A explicação veio natural e inesperada: “Já não preciso dele. Fechei meu açougue.” * Tennessee Williams, o grande dramaturgo norte americano de Um bonde chamado desejo e de Gata em teto de zinco quente, explica friamente o que espera das pessoas que vão assistir às suas peças: “Não me esqueço do público quando escrevo. Quero interessá-lo, enervá-lo, combater sua indiferença e tirá-lo da apatia digestiva do jantar”... * Elizabeth Bishop, poetisa norte-americana que morou no Brasil e aqui viveu coisas incomuns, lá pelo meio do século passado já achava um exagero “tantos homens de calção chutando bolas de futebol por toda parte”. O que ela diria disso hoje? * Ainda a respeito do futebol: 1. “Quem negará ao futebol esse condão da catarse circense com que os velhos sabidos de Roma lambuzavam o pão triste das massas?” (Oswald de Andrade, nos anos vinte) 2. “O jogo brasileiro do foot-ball é como se fosse uma dança. Isto pela influência, certamente, dos brasileiros de sangue africano, ou que são marcadamente africanos na sua cultura: eles são os que tendem reduzir tudo a dança – trabalho ou jogo – tendência esta que parece se faz cada vez mais geral no Brasil.” (Gilberto Freire, em 1900, quando ainda não havia técnicos castradores da inventividade futebolística nacional) 3. “O futebol é, como o carnaval, um agente de confraternidade. Liga os homens no amor e no ódio. Faz que eles gritem as mesmas palavras e exaltem os mesmos heróis. Nos apertões de um estádio cheio, vejo e escuto muita coisa viva, vejo e escuto o povo em plena criação.” (José Lins do Rego, escritor nordestino e flamenguista roxo, lá por 1950)
Ele não podia, mesmo, imaginar que hoje a grande maioria dos que gostam desse esporte nunca assistiu a uma partida ao vivo. Com HD tudo fica mais perto, mais limpo, mais seguro. E quase de graça.
17/03/2018 |