DAS ESCOLHAS

 
O jacarandá-mimoso deitado sobre o rio

 

Pior do que escolher mal é não escolher, dizem os mais experimentados na vida, que chegam a dizer que só nos arrependemos daquilo que não fizemos – uma assertiva de fácil contestação. É bem verdade que “antes uma raspadela no carro ao lado do que uma abalroada no da frente”. Ou ainda: ”Melhor  correr o risco de passar por tolo do que fazer o mal a outrem” – e por aí a fora, porque na vida temos a todo o instante bifurcações e dilemas, quando não trifurcações e  trilemas.

Veja você quantos bons propósitos à disposição de alguém: deixar de fumar, emagrecer, deixar de beber, caminhar todos os dias, controlar a pressão arterial, evitar aborrecimentos, contar até dez antes de explodir...

Ora, se você deixa de fumar (de verdade), não pode sair da rotina: emoções fortes, jamais; nada de acompanhar jogos de futebol de seu time do coração, de ir a festinhas de fim de ano; nem mesmo a velórios. Depois de carnaval e réveillon, velório é a situação em que mais pessoas voltam a fumar, ou por causa do sofrimento ou por causa do tédio. Um ano todo de privações tabagísticas e  quantos quilos você engordou? Quantos centímetros mandou abrir na cintura de suas calças ou quantos buracos novos no cinto? E as camisas perdidas? Até os pés engordam, de forma que sapatos de bico fino apertam demais. ( Não é o sapato que não entra no pé, é o pé que não entra no sapato.)

Deixando de fumar e engordando, você receberá dezenas de conselhos, principalmente sobre a necessidade de caminhar. E vêm as explicações científicas: não se trata de correr sem preparo adequado, pois seu insensato coração pode pifar no primeiro quilômetro do percurso. Trata-se de caminhar com ritmo; nada daquele passinho  burguês de quem está fazendo a digestão; muito menos  aqueles vagares de quem aprecia vitrines de shopping.

Aí você toma gosto pelas caminhadas, que passam a integrar seu cotidiano. Então o calcanhar e/ou a sola do pé e/ou a panturrilha doem. Você apela para umas massagens que às vezes resolvem. Se não, vai ao traumatologista, que pede radiografia dos pés e descobre que você tem aquilo que um amigo meu catalogou de “doença de galo velho”, isto é, esporão. E esporão dizem que não tem cura; é você que precisa acostumar-se às crises, agravadas com o frio.

Além do esporão, há a ocorrência de pressão alta. Andar ajuda a baixá-la, diminui as taxas de triglicérides e de colesterol (o ruim), mas andar muito e/ou em horários impróprios – quase todas as horas do dia o são– pode levar ao câncer de pele, a menos que você caminhe pela sombra, ou à noite, ou só quando  chove, ou use filtro solar fator setenta.

E assim se vão adicionando alternativas: ou você se candidata a morrer do pulmão, ou do coração, ou de câncer, ou você fica sentadinho em casa lendo, ou cochilando em frente à televisão ou vendo a banda passar.

Há quem decida assim: andar sempre, mesmo com dor no calcanhar. Quando o esporão espora mais, socorre-se de anti-inflamatórios ou vai ao traumatologista amigo que lhe infiltra umas substâncias milagrosas a curto prazo. Não abusa do sol quente, mas caminha sem protetor solar, confiante na boa qualidade de melanina que os povos mediterrâneos têm de sobra. O clínico amigo o ajuda a domar a hipertensão e a manter a obesidade num nível próximo da decência. O urologista amigo lhe tem concedido liberdade vigiada, renovável de quatro em quatro meses; o otorrino amigo lhe dá boas notícias sobre as castigadas cordas vocais. Nada como ter bons amigos nas funções certas.

De qualquer modo, o cerco vai se fechando; entende-se melhor que nas opções tomadas já não há autonomia, mas apenas adesão ao que parece menos mau, coisa assim como “ou se calça a luva ou se põe o anel”, verso de Cecília Meireles.

As prescrições médicas, por mais respeitáveis, têm um caráter maniqueísta: cada uma delas privilegia a visão de seu emissor e representa uma forma de invasão de nossos corpos e de solapamento de nossa vontade autônoma.

A partir da idade (variável) em que já não se indaga COMO VAI?, mas ONDE DÓI ?—, nosso corpo vive no estado de sítio representado pelas restrições, pelas dietas, pelas próteses, pelas sondas, pelos implantes, pelos marca-passos...

Guimarães Rosa coloca na boca de Riobaldo em Grande sertão: veredas esta concentrada pílula de sabedoria e prudência: Viver é muito perigoso. Ele só a põe na boca de Riobaldo porque o medo nela embutido é de médico, médico mais de alma do que de corpo. Rosa era médico de sua alma, conhecendo seus limites: sabia como lhe faria mal a emoção de uma posse solene e concorrida na Academia Brasileira de Letras. Adiou tudo enquanto pôde, mas acabou cumprindo o ritual. Morreu do coração, dias depois. Seu dilema era este, à maneira de Cecília: “ Ou assumir e morrer logo / ou não assumir e viver em débito público”.

 

16/12/2017
emelauria@uol.com.br

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