Cumprindo tarefa

            Não há falta de assunto, propriamente. Há, isto sim, uma espécie de recusa interna em tratar da maioria dos temas à mão, como se de repente, sem essa nem aquela, se instaurasse uma espécie de comprovação da desnecessidade de escrever sobre política, educação, literatura e atualidades.

            Alguém dirá que se trata de spleen, um estado de ânimo bem de acordo com jovens de caráter romântico, não de um homem mais que maduro, às vésperas de entrar nos três quartos de século bem vividos. Se enveredo por aí, logo um leitor me soprará que estou é  com veieira, nenhuma doença das veias, mas sim defeito insanável de quem ficou véio... Deve ser isso.

            O envelhecimento tem aspectos muito particulares, porque ninguém envelhece por igual. Aqui, por causa de certa dificuldade corporal, você desiste de caminhar os tantos quilômetros diários recomendados e resolve por sua conta e risco cumprir, quando muito, metade da tarefa; ali, você se questiona se paga a pena, na sua idade, manter certos compromissos a que ninguém mais o obriga. Você os cumpre porque quer, gosta, ainda se acha útil e capaz; mais além, acomete-o séria dúvida: o que você está fazendo é compatível com seu estado? E assim vai, como se envelhecer fosse, em resumo, excluir, abdicar.

            O fato é que dinamismo, mobilidade, espírito de iniciativa, inventividade não são atitudes próprias de nenhum setuagenário. Se você, nesta idade provecta, ainda revela uma ou mais destas enormes virtudes, dê-se por muito feliz e considere-se mesmo um privilegiado.

            Não quero, porém, deixar escapar um atalho que pode dar a um bom lugar: ninguém envelhece por igual.  Até agora, tenho sentido uma espécie de pudor em, por exemplo,  me sentar num banco de jardim público lá pelas dez da manhã, como tantos fazem em nossas praças. Têm horários certos, lugares certos, companheiros certos. Se um falta ao compromisso, logo os outros se preocupam. Um dia de ausência, tudo bem. Pode ter sido visita inesperada, achaque esperável, compromisso incomum. Se o companheiro não dá as caras por dois ou três dias, então os outros já ficam em estado de alerta, querem saber o que está acontecendo. O retorno do irmão desgarrado é sempre um alívio, porque, afinal,  quase todos estão naquela faixa etária que se pode chamar de linha de frente na batalha da vida, ou seja, mais de setenta, alguns até adentrando os oitenta.

            Pergunta típica que fazem a quem já não deveria estar preso a horários, a compromissos profissionais, em razão da idade:

            -- Você ainda leciona?

            -- Ainda; não muito, mas ainda dou minhas aulinhas.

            Que força tem este advérbio ainda... É de tempo, mas de um tempo comparável a prazo de validade vencido. O implícito da pergunta é cheio de censuras, como se dissessem:

            -- Você não percebeu que está na hora de sossegar, de dar o lugar para outro bem mais jovem, mais disposto, certamente mais necessitado do que você?

            Então penso no caso e me faço (isso se repete há pelo menos cinco anos) uma espécie de promessa, por enquanto de difícil cumprimento -- no ano que vem, eu não trabalho mais...

            Mas o contato com os moços, tanto alunos como professores, é de reconfortante efeito. Na UNIP, há pessoas lecionando tão jovens, tão cheias daquele viço que fortuna não deixa durar muito, no dizer de Camões, que tenho vontade de lhes perguntar em que série estão, que cursos de graduação freqüentam.. Na verdade, tantas delas cresceram em idade,  beleza, sabedoria e graça sem perder aqueles amáveis gestos de adolescentes. E são gentis, reservando a colegas tão distanciados na idade um tratamento reservado a tios madurões, a avôs indesmentíveis.

            Volto ao caminho mais largo desta digressão: ninguém envelhece por igual. E isso é tanto motivo de alegria quanto de mágoa. O marquês de Maricá (1773-1848), autor brasileiro que não primou pela originalidade, tem, contudo, esta frase que merece reflexão: “Nada há mais ridículo do que um velho que não se reconhece como tal”. Claro, no tempo em que viveu, envelhecia-se muito mais cedo e muito mais por igual, mas há um tom de solene advertência em seu dizer. Rui Barbosa (1849-1923) não perde oportunidade de empregar um verbo que não encontrei jamais em outro autor: campar, no sentido de vangloriar-se, orgulhar-se: “Onde os meninos camparem de doutores, os doutores não passarão de meninos”. Ambas as frases têm muita relação com o envelhecimento desigual, de tal forma que numa só pessoa podem perigosamente conviver sensações e aspirações com décadas de diferença entre si.

            Não que por vezes eu tenha abstraído o fluir do tempo e me colocado na situação de muito jovem, mas seguramente  evitei, até agora, reconhecer que tenho integralmente setenta e quatro anos completos: aqui e ali, dou-me sessenta; em situações especiais me considero com cinqüenta... Menos não, porque, afinal, tudo tem limite!

            Estas manobras diversionistas não enganam quase ninguém, mesmo porque para os jovens de verdade tanto faz alguém se dizer com cinqüenta ou sessenta: como confirma a música que já fez muito sucesso, não se deve confiar em ninguém com mais de trinta...

            E assim, à semelhança daqueles dois italianos náufragos que, mesmo não sabendo nadar, chegaram sãos e salvos à praia porque vieram conversando, conversando, mais com os braços do que com a boca, eu já me vejo próximo ao fim da tarefa semanal de preencher este espaço generoso, conversando com meu hipotético leitor.

            Claro, não é sempre que se pode fazer como hoje, em que imitei conscientemente aquele tipo de professor enchedor de  lingüiça, que ao final da aula, se se perguntar de que tratou, terá dificuldade em responder.

            Acho que hoje  desanuviei um pouco o espírito, porque se há coisa que não nos falte neste nosso Brasil, neste nosso São Paulo, nesta nossa São José do Rio Pardo, nesta nossa vida social, familiar e pessoal são motivos de anuviar. Se não nos dermos conta disso, poderemos até precisar do socorro poético de Olavo Bilac (1865 – 1918) em seu esquecido soneto alexandrino Benedicite (= bendizei). Depois de seu louvor a quem fez o fogo e o teto, a quem uniu a charrua ao boi, ao que encontrou a enxada  e tratou do campo, ao que forjou o ferro, ao que ideou o lar, o berço e o jazigo, ao que urdiu o fio, ao que achou o alfabeto, ao que deu a primeira esmola, ao que se pôs a navegar, a cantar e a tocar, ao que domou o raio e inventou o avião, Bilac conclui que o mais bendito de todos é o que descobriu a  esperança, a divina mentira, que deu ao homem o dom de suportar o mundo!

            Tenho escrito, por hoje.

 

16/09/2006
(emelauria@uol.com.br)

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