Bem mais que futebol
Interesse pela tal Eurocopa? Sim, apenas relativo. Quando a nossa Seleção não vai bem, eliminada de cara da Copa América e sob ameaça de nem se classificar para a Copa de 2018 na Rússia, nosso ânimo futebolístico arrefece. Mas, durante tardes e noites, por duas semanas, lá estiveram a nossa disposição na tevê dezenas de partidas travadas entre times de países com longa história no esporte bretão, como a campeã Espanha, a aguerrida Alemanha, a perigosa Itália, a metódica Inglaterra, a dramática França. Também times inexpressivos como a enigmática Irlanda, a gélida Islândia com população menor do que muito bairro da cidade de São Paulo, a ignorada Gales. E, empatando todas as partidas, mantendo-se viva aos trancos e barrancos, às custas do talento de Cristiano Ronaldo, a equipa (assim mesmo) portuguesa. * O que se viu foram surpresas em cima de surpresas, com muitos dos grandes fracassando redondamente e muitos dos pequenos pregando peças e conquistando as simpatias do mundo todo. Mais algumas vezes os Davis derrubaram corajosos os soberbos Golias. Inglaterra e Rússia mal disseram a que vieram, eliminadas sem apelação. A Itália engoliu a Espanha; a metódica Alemanha despachou a Itália; a França delirou de felicidade ao derrotar os terríveis adversários de sempre e em tudo – os alemães. É penosa a contenda de séculos e séculos entre os dois países, agora aliados de carne e unha na Europa sacudida pela loucura incompreensível resumida na vitória do tal BREXIT, palavrão inventado com o divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia. * O caminho da vitória francesa na partida decisiva parecia não só asfaltado, mas até florido. Bastava vencer o último e modesto obstáculo – Portugal, aquele mesmo Portugal que em seus próprios domínios tinha deixado escapar, em 2004, a sonhada Eurocopa, vencida pela Grécia, sim, pela fracota Grécia. Em poucos minutos de jogo, pensou-se que o pior iria acontecer: Cristiano Ronaldo deixando o relvado, com o joelho em pandarecos. Bem que ele se esforçou para ficar, mas qual! Saiu de maca, chorando de verdade, quem sabe mais de desgosto do que de dor. Fora maldosamente caçados pelos botocudos zagueiros de antepassados africanos, envergando a camisola azul dos franceses. * Ora, se com o CR7 em plena forma Portugal só empatava, que se pensar dos lusitanos sem seu astro, sem aquele diferenciado jogador, muito perto de ser considerado por unanimidade o melhor do mundo? Pois o imaginário personagem Imponderável de Almeida, criação de Nélson Rodrigues, entrou em ação, meteu bolas francesas nas traves, blindou o guarda-redes Rui Patrício, endireitou o pé do guineense Éder. O renascido orgulho português venceu todos os obstáculos e ganhou o prélio por um golo a zero! Alegria geral, ainda mais que cerca de quinhentos mil portugueses emigrados na França se consideram muito mal remunerados e vítimas de forte preconceito. Esta vitória caída do céu serve ainda como redenção a três coisas: ao fiasco de 2004; como tardia revanche à invasão napoleônica de 1808 (que obrigou a corte portuguesa a se mandar às pressas para o Brasil) e como completa valorização de Cristiano Ronaldo que, além de verter sentidas lágrimas pela sua contusão, foi muito solidário com os companheiros e precioso colaborador do técnico Fernando Santos. Humanamente, RC7 cresceu muito aos olhos do mundo, ele que leva fama de convencido, egoísta e mal educado. * O futebol brasileiro bem que anda precisado de um sucedâneo de RC7, alguém como Pelé, ou Zito, ou Gérson, capaz de jogar muito bem e de influenciar todos os companheiros dentro ou fora do campo e até poder mandar um pouco no próprio técnico. Neymar parece não levar jeito para tanto. * Acabei torcendo calorosamente pelos portugueses e sentindo-me muito feliz com a inesperada vitória lusitana. Afinal, temos séculos de história em comum, falamos a mesma língua, apesar da nossa crescente dificuldade de entendermos o que dizem os de além-mar... Enquanto no Brasil o idioma se vocaliza, em Portugal ele se consonantiza. Quando eu cursava o Colegial, o professor de Literatura adotava como livro de leitura e estudos a conceituadíssima Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, composta por textos de autores portugueses e brasileiros, ou seja, a língua era o traço comum entre os dois povos. Camões, Vieira, Eça soavam tão nacionais quanto Alencar, Gonçalves Dias, Machado, Euclides, enquadrados todos no conceito de Fernando Pessoa que proclamava a plenos pulmões: Minha Pátria é a língua portuguesa! Logo, nada tão natural do que brasileiros torcerem pelos vermelhinhos em sua gloriosa luta contra os azuis franceses, ainda mais que havia até jogador brasileiro naturalizado português. * Quem sabe num futuro alcançável por nós, possa o futebol brasileiro viver momento de rara felicidade como vivem agora os portugueses e que tenhamos a completa alegria de nos lembrarmos de feitos assim gloriosos. Amém. Amém.
16/07/2016 |