Inveja da Flip

 

Bairristicamente tão despeitado  quanto  um amante relegado ao esquecimento, acompanhei de longe  quase tudo o que se  divulgou a  respeito da recente  Flip (Festa  Literária Internacional de Paraty) e me fiz a pergunta que amantes relegados também fazem:

- O que é que Paraty tem que nossa terrinha aqui não tem?

(No campo amoroso seria como seria indagar: "O que é que ele/ela tem que eu não tenho?")

Eu pensava na força, prestígio e durabilidade de um autor como Euclides da Cunha, rememorado  entre nós há quase um século. Paraty não tem nada disso e na verdade nem quer ter. Enquanto ficamos com nossas seriíssimas comemorações  euclidianas, Paraty nas nove edições da Flip se comportou com volubilidade e leviandade,  variando de patronos, convidados e temas  a cada ano. Para o ano que vem, o foco baterá em Carlos Drummond de Andrade.

Nós somos os cultores de uma espécie de samba de uma nota só, enquanto eles, sob o título geral de “festa literária”, entram pelo cinema, pela música, pelo teatro, pela dança, pela política, pelo bate-boca,  pela fofoca  e se tornam notícia no mundo todo.

Além de infiel (ou quem sabe por causa disso) Paraty tem padrinhos fortes no governo federal, no estadual, nas comunicações, nas editoras,  na indústria gráfica. E  um aliado eterno – o mar.


O mar na praça

Quem conhece Paraty sabe: a cidade, belíssima com suas montanhas verdejantes, com seus casarões coloniais, com suas ruas de rude calçamento, com seus imensos quintais arborizados, torna-se pitorescamente imbatível com o auxílio da maré. Lá pelas tantas, com precisão japonesa, o mar sobe, invade as ruas, inunda as casas de sempre, apanha desprevenidos turistas, de repente ilhados no hotel, na tosca pousada de mobiliário rústico e forro de taquara trançada, na loja, no bar da esquina.

Quer dizer, Paraty, embora não tenha boas praias, tem a conivência do mar, o luxo das lanchas e das escunas, a vida boêmia despoliciada, o mundanismo social sem freios, a localização a meio caminho entre São Paulo e Rio. A cachaçaria da cidade é um luxo de variedade e sofisticação. Vi lá – só vi –  um litro de pinga produzida em Salinas – MG com o modesto preço de seiscentos reais! Isso há quatro ou cinco anos.

 

*

 

Imagino o desconforto do velho mestre Antonio Candido, feliz associação de sociólogo e crítico literário, legítimo produto do que melhor teve/tem a Universidade de São Paulo. Por causa de seus lúcidos noventa e três anos, não deve ter gostado nada do que ouviu de ruim música, de ruim literatura, de ruim conversação, de ruins concepções de um mundo cada vez mais distante de sua visão pessoal, eticamente inatacável.

Foi a Paraty, como uma espécie de conferencista oficial,  para falar a respeito do grande homenageado da Flip-2011: Oswald de Andrade, o mais combativo e combatido nome do Modernismo brasileiro, inaugurado nos anos vinte do século passado.

Oswald de Andrade, amigo de Antonio Cândido, apesar das muitas diferenças de caráter, de temperamento, de cosmovisão.  Ler o clássico estudo de Candido sobre Oswald ajuda muito a entender  o inquieto criador  do Manifesto antropofágico, das  Memórias sentimentais de João Miramar. Está em Brigada ligeira, de 1945.

Antonio Candido fez em Paraty algumas revelações, como a de que há vinte anos nada lê de novos autores, preferindo empregar seu  tempo na releitura de nomes consagrados da cultura universal.

 Confessou também que, como crítico literário,  teve  dificuldade em reconhecer valor  nos escritos de Clarice Lispector, hoje a unanimidade feminina de língua portuguesa. Não apreciava sequer o nome da escritora: Lispector não lhe parecia nada para ser levado a sério.

Disse mais, que os críticos literários da grande imprensa atual, todos de  formação universitária, não se arriscam jamais  a comentar autor estreante.  Preferem falar sempre sobre  mortos e/ou  definitivamente consagrados.

 

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Estou com vontade de me tornar desde agora seguidor daquela norma de Antonio Candido – não ler obra de autor desconhecido.

É que recebi de presente As teorias selvagens, de Pola Oloixarac (como se pronunciará este sobrenome, quiçá de origem basca?), a musa argentina da Flip-2011. A danadinha não  gosta de ser tratada como mulher bonita, embora o seja, conforme prova  fotografia na orelha do livro. Ah, também ela detesta ser fotografada.

Se eu for respeitar a ordem cronológica da recepção do que pretendo ler, é possível   que as 239 páginas da jovem autora encontrem vez daqui a um ano, um ano e meio, se vivo e são eu for.

Nem por isso deixo de perlustrar o volume com sua capa anárquica.

(Desculpe-me o diligente leitor, mas fazia tempo que eu estava à espera da oportunidade de empregar com propriedade o termo “perlustrar”, segundo o Dicionário Aurélio do século XXI, “percorrer com a vista, observando, examinando”. Se eu não aproveito agora, sabe-se lá quando surgirá outra ocasião propícia.)

Perlustrando-o, fico sabendo que As teorias selvagens, 1.ª edição/2.ª tiragem, 2011, publicação Benvirá  [Saraiva] ”é mistura de romance filosófico e comédia elisabetana na era do blog. Feroz sátira da fauna intelectual que reina na universidade. E um delirante tratado sobre as perversões urbanas, do pornô underground  aos videogames, das pílulas coloridas ao fast-food.”

Ricardo Piglia, escritor argentino, não deixa por menos: “ A prosa de Pola Oloixarac é um grande acontecimento na nova narrativa argentina. Seu romance é inesquecível, filosófico, selvagem e muito sereno”.

Promete, não é mesmo?

 

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Beco florido

Paraty,  belo nome.  Que significa? Talvez mar branco, talvez jazida do mar, talvez golfo... Para termos de origem tupi, nem sempre  há uma etimologia  indiscutível.

Como  substantivo comum, designa    um peixe branco, espécie de tainha, como é ainda sinônimo de cachaça, inicialmente daquela produzida em Paraty. Em O cortiço, de Aluísio Azevedo, está lá que o personagem “tragava dois dedos de parati pra cortar a friagem”...

Velho samba carnavalesco de Assis Valente diz que um sujeito “vestiu uma camisa listrada e saiu por aí. Em vez de tomar chá com torradas bebeu parati...”

E a grafia Paraty, elegantíssima com esse y, que segundo um poeta lembra um lírio?  Integra o patrimônio histórico da cidade, indispensável  como o h de Bahia e o próprio y de Itamaraty.


Velha torre

Não há como negar a beleza do termo. Andou bem Guimarães Rosa ao pontificar que certas palavras têm canto e plumagem.

 

*

Flip  seria apenas uma sigla ou seus criadores tiveram outras intenções?  Leio no Novo Michaelis, dicionário ilustrado (Inglês/Português) da Melhoramentos  que flip tanto significa “sacudidela, arremesso rápido”, como “ mistura de aguardente, rum ou cerveja com açúcar e ovos;  gemada”.  Adjetivamente quer dizer petulante, verboso, insolente, irreverente. 

Interessante, não?

 

16/07/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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