Se liga Brasil


Jacarandá-mimoso

 

Pequeno grupo de senhores inconformados  com o que chamam de agressão à língua portuguesa, pede-me que comente o patriótico apelo  que serve de título a este artigo.

Trata-se da  frase-síntese de uma campanha que teve por finalidade brecar a marcha para o autoritarismo, lançada em setembro de 2010 por algumas das mais expressivas personalidades da democracia brasileira, como Hélio Bicudo, D. Paulo Evaristo Arns, Ferreira Gullar, Carlos Vereza, Celso Lafer... Leitores mais atentos  com certeza se lembrarão. Eu me preocuparei apenas com  seus termos, não  com seu objetivo, sempre atual.

Sob o ponto de vista da correção gramatical, trata-se de  um dos mais acabados exemplos de concentração de má linguagem por centímetro de linha. Numa forma castiça hoje quase inaceitável em nosso país,  a frase deveria ser  LIGUE-SE, BRASIL! ou LIGA-TE,BRASIL!  – o que, reconheçamos, nada tem de natural nem de espontâneo.

Analisando suas impropriedades: num determinado nível de expressão escrita não se inicia frase por pronome oblíquo, não se misturam formas de tratamento (se é pronome de terceira pessoa e liga é imperativo de segunda), não se deixa de separar por vírgula o vocativo (Brasil) do restante da oração.

Sei que algum afoito já estará pensando com seus botões: “Mas quem se importa hoje com essas gramatiquices?” –  e eu direi que muitos, muitíssimos.

Corre por aí a falsa ideia de que a correção de linguagem nada tem a ver com sucesso profissional. Grave e fatal engano. Verdade seja dita que existe mesmo certa indiferença  quanto ao apuro no escrever-se, mas o destino de milhões ainda depende (e muito) de consciente cuidado na escrita, observado em especial nas profissões ditas redacionais, nos concursos públicos e nos vestibulares mais disputados.

Sirva de exemplo a momentosa questão de candidatos do ENEM - exame nacional do ensino médio-, cuja nota tem valido até como substituta  de vestibulares em muitas universidade brasileiras. Batendo até a portas de tribunais, concorrentes  que se julgaram prejudicados na  avaliação,  tiveram acesso à sua redação e aos critérios aplicados em seu julgamento, em busca do direito de saber qual a natureza das impropriedades de sua expressão escrita. Claro que os elementos mais ponderáveis nessas avaliações sempre são a coesão e a coerência, tantas vezes, porém, prejudicadas por lamentáveis deslizes de ortografia, por agressões a princípios gramaticais de construção, de concordância, de regência.

Alguém, de peito aberto, dirá que quem faz a língua é povo, e até citará o testemunho de bons autores, como José de Alencar, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, a seu modo e a seu tempo uns iconoclastas da gramática normativa e não meramente descritiva. Não houve, mesmo, ao longo dos séculos língua alguma que tivesse ficado imune à força expressional simplificadora e niveladora das maiorias populacionais.

Isso ocorreu na longa história da língua portuguesa, idioma do grupo neolatino e resultado da longa evolução, na Lusitânia, do latim em sua vertente chamada vulgar, ou seja, trabalhada pela expressão de pessoas em sua quase totalidade sem acesso a textos escritos.

Há diferenças significativas entre o idioma latino aprimorado por Cícero, Ovídio, Virgílio, Júlio César e a fala de soldados, camponeses, aventureiros, comerciantes que dele se serviam nas mais diferentes localidades da Europa Ocidental por onde se estendeu por séculos o Império Romano.

Quando nos enchemos de coragem e lemos o que tão desinibidamente escrevem as pessoas na internet, especialmente nos comentários  que fazem a fatos e notícias da atualidade, podemos avaliar, guardadas as devidas distâncias, o que eram as fontes do latim vulgar – textos de que os eruditos  se valeram para testemunhar a evolução fonética sofrida na boca do povo por termos e frases, através de séculos. Não faltou mesmo quem se dispusesse a elaborar listas de formas certas e de formas erradas.

Ainda leio com deleite e espanto essas fontes do latim vulgar. Entre elas, as inscrições elaboradas por humildes artesãos plebeus que, sem o quererem,  deixaram retratada nelas a sua própria linguagem. Hoje, quem quiser se espantar com as cacografias de todos os graus, leia algumas inscrições tumulares. Aqui mesmo, no cemitério municipal, há batatadas do arco da velha. Isso sem se falar nas placas, escritos do Brasil todo em que a língua portuguesa é submetida a torturas de toda ordem, fazendo as delícias de certa classe de internautas.

De igual valor o Appendix Probi, documento escrito em Roma, provavelmente no século III de nossa era por um tal Probus. Trata-se de uma relação de palavras empregadas correntemente, com a respectiva correção ao lado: Speculum, non speclu. Calida, non calda. Oculus, non oclu. Rivus, non rius. Nunquam,  non nunqua. Ansa, non asa. Vobiscum, non voscum. Pois passaram para o português exatamente as formas resultantes daquelas tidas como erradas: espelho, calda, olho, rio, nunca, asa, (con)vosco!

O mesmo acontece com as glosas, meio auxiliar de se facilitar a leitura dos autores latinos consagrados. As  palavras eruditas desconhecidas pelos leitores comuns eram acompanhadas de termos populares de igual sentido. Nem é preciso dizer que passaram para o português essas formas populares: bela, em vez de pulchra; coxa em vez de femur; fecato (fígado) em lugar de iecore; mercatum, e não forum...

Quase desanimador tentar ler um documento chamado Peregrinatio ad loca sancta (Peregrinação aos lugares santos), escrito por uma freira semianalfabeta, que bem mereceria a honra de se tornar padroeira desse pessoal que escreve sem nenhuma discrição na internet.

Não fica atrás a Mulomedicina Chironis, tratado de veterinária de um tal Quirão. O homem é insuperável  na arte de não saber escrever.

 Como é que de speculum saiu espelho? Como de benedictione surgiu  bênção e de cogitare deu cuidar?  Apenas pelo lento e constante trabalho de modificação fonética ocorrido, como que gradativa e imperceptivelmente, no falar de pessoas que jamais tiveram noção do que faziam da língua que receberam de seus antepassados.

Esse moroso e ininterrupto modo de se formarem as línguas neolatinas foi possível em especial porque a predominância da linguagem falada sobre a escrita era esmagadora. Ainda hoje, muito mais se fala do que se escreve, mas as formas de fixação da linguagem escrita estão em permanente utilização, através de jornais, revistas, livros, pesquisas, publicidade e propaganda. A flutuação do aspecto formal dos vocábulos é infinitamente menor, de maneira que os estropiamentos vocabulares tão notados nas redes sociais de hoje têm mínima possibilidade de um dia substituírem as formas consagradas pelo uso geral e resguardadas pelos dicionários e pelos formulários ortográficos.

Então, que não se iludam os que estão à espera de um geral nivelamento por baixo. Os próprios signatários do Se liga Brasil sempre tiveram muito cuidado com os textos que escreveram individualmente e jamais teriam coragem de cometer impropriedades de linguagem neles. Para efeito de afirmação pessoal, de progresso profissional e de respeitabilidade social, a meta continua sendo o esmerar na linguagem, tanto no falar, quanto no escrever. O que se disser em sentido contrário deve ser tomado como conselho equivocado, quando não como maldoso, mesmo.

Liguem-se os interessados no estudo e na leitura exemplar. Nada de acreditar em facilidades que não ocorrerão.

 

16/06/2012
emelauria@uol.com.br)

 

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