Paulo Dantas – o do “Capitão Jagunço”

Se há pessoas no Brasil que nunca souberam  autopromover-se, acho difícil que se possam comparar a Paulo Dantas, o valoroso euclidiano falecido esta semana, aos oitenta e cinco anos.

Nordestino de nascimento, de coração e convicção, o autor de Capitão Jagunço e de Euclides, Opus 66  sempre deu até a seus amigos mais chegados aquela impressão de urso em dia de mau humor. Cabelos espetados, rosto fino, bigode anacrônico, roupas descuidadas, voz rouca e de pouca musicalidade, fumante incurável,  era sempre um sujeito enfiado, pouquíssimas vezes capaz de um comentário mais solto, menos filosofado.

Sergipano de Simão Dias, nasceu em 1922; criado na Bahia. Indo para o Rio de Janeiro, trabalhou na Livraria Civilização Brasileira e no jornal D. Casmurro. Vencedor de diversos prêmios literários, inclusive da Academia Brasileira de Letras. Em busca de melhor clima e repouso para a saúde abalada, morou cinco anos em Campos do Jordão. Depois se radicou em São Paulo, trabalhou em cartório e foi diretor da União Brasileira de Escritores.

Se não fosse o trabalho de rato de biblioteca e arquivos de Adelino Brandão, ninguém saberia com detalhes  quanto Paulo Dantas escreveu a respeito de sua outra admiração – Euclides da Cunha.

Pois na preciosa obra de Adelino – Euclides da Cunha - Bibliografia Comentada, Editora Literarte, Jundiaí, 2001,  estão arroladas em nome de Paulo Dantas  nada menos de dezoito entradas na seção “Obras sobre o Autor”, além de cinqüenta outras inserções sob o título geral de “Jornais, Revistas, Anuários, Artigos e Reportagens”.

Merece especial destaque  O Capitão Jagunço, romance, texto definitivo, 7.ª  edição de 1987, Melhoramentos, com prefácio de Milton Vargas. Em apêndice, a conferência sobre Euclides, proferida na abertura de uma Semana Euclidiana e o relato da viagem a Canudos para recolher material que serviria ao livro. Comentário de Adelino Brandão: “O personagem-título é real. Viveu o drama de Canudos e passou à história sob a acusação de ter traído os companheiros. A guerra contada pelo lado interno, por um grande jornalista, prosador e homem do sertão”.

Na tentativa de tornar mais acessível a jovens leitores a saga de Canudos, Dantas escreveu também Menino Jagunço, classificado como literatura paradidática (2.ª edição, Ibrasa, SP, 1986) – história do conflito de Canudos, romanceada, para a juventude.

Obra de fôlego e pouco divulgada é Euclides da Cunha e Guimarães Rosa através de “Os Sertões”, Massao Ono, São Paulo, 1996. Comentário de Adelino Brandão: “Belíssimo estudo comparativo entre os dois autores, em que o autor, ora em prosa poética, ora em técnica ficcional, ora imaginando uma entrevista com os dois grandes clássicos do modernismo nacional, vai estabelecendo as ligações literárias entre eles e os grandes regionalistas brasileiros, desde o século XIX até os nossos dias. Estou de acordo com a parte da crítica nacional que, embora difíceis, considera Os Sertões e Grande Sertão:Veredas os dois livros mais geniais e importantes deste século”.

Em comemoração ao centenário de nascimento de Euclides (1966), Paulo Dantas lançou Euclides, Opus 66, biografia fragmentada em prosa poética. Adelino classifica-a como “expressiva suíte dramática sobre a vida do escritor. As qualidades literárias de um grande romancista, postas a serviço da história da vida de Euclides da Cunha”.

Não posso dizer que privei da amizade de Paulo Dantas: éramos euclidianamente solidários, ele aqui vindo todos os anos, lá por 1970 e 80. Uma vez ou outra participava de reuniões em minha casa. Disso há um registro que reproduzo com a triste comprovação de já estarem mortos todos os homens da foto infelizmente sem data, mas  de uns trinta anos passados.

 

De pé estão Adelino, minha mulher Marina, Élcio Rodrigues. Sentados: Paulo Dantas, pelo jeito comendo um pastel, e Dálvaro da Silva achando muita graça na voracidade do amigo, o único que não prestou a mínima atenção à máquina fotográfica.

Num dos raros momentos em que ele me abriu a “apertada porta de sua intimidade” (frase de Euclides), falou dos seus quinze minutos de evidência quase nacional, motivados pela corajosa participação num programa de televisão de grande apelo: O Céu É o Limite, comandado por Aurélio Campos. Dantas respondeu (e muito bem) sobre a vida e a obra de um grande amigo – João Guimarães Rosa. Que eu me lembre, ele preferiu não se arriscar muito, ganhou um bom dinheiro e saiu da competição com toda a dignidade.

Dentre as coisas sobre Guimarães Rosa que ele me contou, fiquei impressionado com o que se poderia chamar a “gestação” do enorme Grande Sertão, com suas quatrocentas páginas e nenhuma divisão em capítulos: depois de muito pensar sobre o assunto e tendo-o por assim dizer pronto na cabeça, Rosa avisou a  sua mulher que iria manter-se trancado num quarto, em casa, por algum tempo. Não queria ser incomodado por nada. E assim foi. Por três meses ficou recluso de seu enredo, escrevendo, escrevendo, como que “tomado”, como  se tudo lhe chegasse já em forma definitiva.

Causou-me estranheza a insistência do convite que Paulo Dantas  me fez, há uns vinte e cinco anos: queria que eu fosse a São Paulo gravar em videoteipe um depoimento na Casa de Cultura Mário de Andrade, na Rua Lopes Chaves. Acabei indo e falando sobre uma das grandes admirações de Mário – o longo poema “Cobra Norato”, lenda amazônica magistralmente desenvolvida pelo poeta modernista gaúcho Raul Bopp. Foi então que conheci um Paulo Dantas eufórico e falante. Preciso agora  criar coragem e solicitar da Casa de Mário de Andrade uma cópia de meu testemunho, fundamento de longo estudo publicado com destaque pelo “Suplemento Literário” do jornal Minas Gerais, de Belo Horizonte.

A morte de muitos de seus companheiros euclidianos, como Moisés Gicovate e Oswaldo Galotti, deve ter desencorajado Paulo Dantas de freqüentar todas as Semanas Euclidianas da última década. Nas em que aqui ainda esteve, ficava um ou dois dias, não aceitava assumir palestras no Ciclo de Estudos, preferindo conversar com remanescentes e raros  amigos, independentemente de horários ou compromissos.

Quem transmitiu a notícia de sua morte à direção da Casa de Cultura Euclides da Cunha foi o jornalista Henrique Novak, ele próprio dos últimos de um pujante grupo de euclidianos de São Paulo, muito reduzido pela inexorável marcha dos dias.

Ao lado de Vinício Rocha dos Santos, recentemente falecido, Paulo Dantas será o nome lembrado na Semana Euclidiana de 2007.

É de se lamentar o grande número de euclidianos que têm morrido neste começo de século, quase sempre pelo simples decurso do tempo, num claro alerta de como as gerações mais novas precisam com urgência assumir as tarefas que a continuidade do euclidianismo exige.

 

16/06/2007
(emelauria@uol.com.br)

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