RONCOS & ANALFABETISMO
ERA EM ARAÇATUBA e lá estávamos desenvolvendo um dos muitos cursos sobre Euclides da Cunha. Excelente o local das aulas, um auditório com requintes de luxo, poltronas estofadas, ar-condicionado e tudo. Tratavam-nos com deferência e cortesia, ofereciam-nos todas as condições de um bom trabalho, destinado a uma centena de professores de Português, História e Sociologia da vasta região da Divisão de Ensino. Hotel muito confortável, luxuoso mesmo. Indagaram se nós, conferencistas, preferíamos dormir em quartos isolados ou alojados dois a dois. Por solidariedade ou cansaço, imprudência ou porque sim, ninguém se opôs ao uso de apartamentos compartilhados com um colega. Quem já esteve por lá sabe que calor faz. Não gosto de dormir com o ar-condicionado funcionando. Quando muito o deixo ligado por um bom tempo e lá pelas tantas, desligo-o para poder dormir. Isso quando sozinho. Lá em Araçatuba meu sócio de noitada pensava de outro modo e eu não quis criar caso: afinal, era só aquela noite. Assim, o condicionador funcionou o tempo todo, o que me impediu de cair no sono mais que merecido, depois de um dia bem ativo. Minutos depois de acomodado, meu meeiro de quarto dormia a sono solto, enquanto eu lá estava desconfortável com o ruído do aparelho ligado. Pensei que estivesse desconfortável. Desconforto mesmo se instalou quando outro ruído mais possante se impôs ao silêncio da noite: o ronco enérgico de meu colega. Tentei não prestar atenção a seu resfolegar, aos fungados, assobios, à motosserra desregulada que de vez em quando parecia empacar, mas recomeçava logo depois, como que engrenando nova marcha. O tempo foi escorrendo devagar e eu inquieto, de olhos arregalados na escuridão, arquitetando como interromper a irritante cacofonia. Levantei-me da cama e apliquei ao roncador um repelão no ombro, para ver se ele mudava de posição. Então me dei conta de suas particularidades no dormir: tendo problemas de flebite, levava até ao fim das canelas uma grossa meia elástica e não dispensava um alto travesseiro para apoio dos pés, que deveriam ficar em nível mais elevado do que a cabeça. Ora, para seguir essas prescrições do médico, ele precisava ficar sempre de costas, sem dúvida a melhor posição para um ronco desinibido e ininterrupto. O repelão de nada adiantou. (Vai-se saber se ele também não tomava tranqüilizantes...) Suportei o quanto pude aquela contingência; quando bateu mesmo a irritação, acendi as luzes e dei umas boas travesseiradas no besouro sem asas. Ele acordou meio assustado, custando a localizar-se. Ao perceber a realidade da situação, seu comportamento foi muito equilibrado e cortês: “Você me desculpe, eu deveria tê-lo avisado. Ninguém suporta meu ressonado.” “Você é que me desculpe. Quem sabe deitando-se de lado...” “Ah, sei, não posso. E na verdade atrapalho mesmo. Minha mulher sempre me lembra que devo dormir sozinho...” E foi ficando muito desperto, lépido, falante, sem nenhum sinal de ofendido com meus golpes de travesseiro. Desandou a contar casos de seus incidentes noturnos, primeiro me dando brecha para uma resposta ou ligeira intervenção. Depois monopolizou as falas, nem esperando participação ou intervenção. O fato é que, muito cansado, fui me enlevando com sua voz e caí no sono. Dormi com o ar-condicionado funcionando, as luzes acesas e meu colega falando, falando. De manhã tomamos o café juntos. Aguardei a melhor oportunidade de me desculpar outra vez, mas acabei não o fazendo. Tempos depois, encontramo-nos em Franca, noutro curso. Para evitar qualquer possibilidade de cair outra vez na armadilha do apartamento compartilhado, tinha levado comigo minha mulher. Com ela o ar-condicionado fica inativo. Seu ressonado é em tom menor e já não me perturba. Nem o meu a ela, parece. MOISÉS GICOVATE, ANTES DE SER AMIGO E GURU de tantos de nós, fez-se o geógrafo conceituado, o especialista em direito agrário e o euclidiano profundo. Manteve a vida toda a mais sincera afeição pelo Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, onde foi aluno e professor. Nos muitos anos em que participou de nosso Ciclo de Estudos Euclidianos, tinha sempre em ponto de narrativa um fato ocorrido com gente ligada ao velho colégio, por tanto tempo o padrão das escolas secundárias brasileiras. Achei pitoresca a anedota envolvendo Carlos de Laet, brilhante mestre de Português, jornalista da melhor categoria e polemista dos mais ousados, além de co-autor (junto com Fausto Barreto) da Antologia Nacional, o livro com que muitas gerações tomaram contato com os grandes escritores portugueses e brasileiros de todos os tempos. Eu mesmo conservo meu exemplar fartamente anotado com os comentários do Prof. Hersílio Ângelo, nos recuados anos do curso científico. Vamos ao caso que Moisés nos contou mais de uma vez: No final da carreira do magistério, Carlos de Laet enxergava muito mal, só continuando suas aulas por rigoroso senso do dever. Ao término de seu expediente, costumava tomar condução nas proximidades da escola, na Rua Marechal Floriano, Catete, mais conhecida até hoje por Rua Larga. Sentindo a aproximação de um bonde, solicitou a uma senhora que também aguardava condução: “A Sr.ª pode informar se o bonde que vem vindo é o que vai para a Praça 15?” A mulher ficou meio sem jeito, mas acabou confessando: “O Sr. me desculpe, mas também eu não sei ler...”
15/12/2007
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