Pequenas (Mas Sentidas) Perdas

 

            O velocípede

            Era muito, muito criança e ainda morava na rua onde nascera – a José Teodoro, no Buracão. Acreditava seriamente em Papai Noel, a quem para o vindouro Natal pedira um velocípede.

            Não se vexe se não souber o que vem a ser “velocípede”, o presente que chegou nunca se soube como na manhã certa: tipo de bicicleta, melhor dizendo, triciclo muito primitivo, todo de ferro - rodas, quadro, selim, guidão.

            Fácil de andar? Não. O pedal era fixo e sem catraca, exigindo muito esforço. Freio, nem pensar. Além do mais, onde encontrar na São José de sessenta e tantos anos lugar para a prática com tal máquina pré-histórica? Só muito, muito depois é que usar bicicleta por aqui ficou mais viável com o câmbio de dezoito, vinte marchas, que tornou possível pedalar pela maioria de nossas íngremes ruas. A subida do início da Rua Marechal Floriano ainda é duro obstáculo até para os muito bem preparados.

            Decepção: com pouco tempo de uso pelo dono e seus companheiros de aventura, as raias de ferro do velocípede começaram a desprender-se, inutilizando o belo presente. Ele nem imaginaria, mas alguém lhe disse que cada uma das duas rodas ainda quase inteiras podia servir de brinquedo autônomo, desde que manejada com habilidade por um guiador de arame grosso e de bitola bem ajustada. Assim foi feito, mas de que modo explicar a um menino de hoje como é que se brincava de rodar arco pela rua poeirenta do Buracão?

 

 

            A caneta-tinteiro

            Não era tão criança, porque terminava o curso ginasial, a oitava série de hoje, com quase quatorze anos. Ganhou, já no mês de dezembro, um cobiçadíssimo presente, espécie de relíquia familiar, ignora-se lá com que vida pregressa: nada menos do que a caneta-tinteiro dourada, marca Broadway, trazida sempre fechada numa gaveta de criado-mudo. Ganhou porque iria receber o certificado de conclusão do curso e, ainda mais, estava-se nas vésperas do Natal. Dois coelhos mortos com uma só canetada.

            De posse daquele reluzente objeto de seu antigo desejo, passou caol nela e a encheu de tinta Parker, azul-escura, comprada na Typographia Oliveira. O que escrever de marcante com ela, se as longas férias mal haviam começado? Então se descortina oportunidade ímpar: um sobrinho e afilhado da mãe, seu primo portanto, iria ordenar-se padre e mandou à madrinha especial convite. Daqueles tão especiais que o melhor era mesmo não ir,  ainda  mais que a ordenação seria em distante cidade. E assim surgiu a distinta idéia de passar-se um telegrama, gesto protocolar muito fino e um tanto caro para os padrões familiares.

            Difícil, quando não impossível, explicar às pessoas que usam e abusam do e-mail e dominam a tecnologia do MSN Messenger que naqueles recuados anos telegrama era chique e de raro emprego. Ia-se à agência do Correio, recebia-se o formulário adequado que se preenchia de próprio punho. Por aí se pode avaliar a raridade do uso do telegrama, a não ser em situações excepcionais, principalmente para comunicar falecimentos de familiares a parentes que moravam longe. Aí então, um funcionário postal até se encarregava de escrever a mensagem, se o remetente não o soubesse fazer ou estivesse sob forte emoção.

            Muito mais difícil de acreditar-se é que um concluinte do curso ginasial tivesse sido ensinado por seu professor de Português  a redigir telegramas, com a expressa recomendação  de excluírem-se artigos e preposições, porque a tarifa telegráfica era cobrada  de acordo com o número de palavras empregadas no texto.

            Ele nunca soube se alguém acompanhara , com uma ponta de inveja até, aquela complexa operação de redigir no balcão do Correio (ficava na Rua João Pessoa, onde  é a Drogaria d’Osmar) um telegrama destinado a um primo ( hoje, aos oitenta e tantos anos, vivíssimo, corado, feliz) que desde a mais tenra idade tinha certeza da vocação. E, ouro sobre azul, usando para tão raro momento uma caneta-tinteiro Broadway... Pois tudo decorreu assim, tanto que lhe deram o comprovante devidamente carimbado à moda antiga: Departamento de Correios e Telegraphos.

            Quando, em casa, foi mostrar à mãe a prova cabal do cumprimento de tão nobre tarefa, teve um arrepio: no mesmo bolso em que guardara o recibo, deveria estar também a caneta-tinteiro Broadway, banhada a ouro, como lhe assegurara o pai! Inúteis todas as buscas, as perguntas, a refeitura cuidadosa do trajeto percorrido. Nunca mais se teve notícia da caneta, antes de tudo um presente emblemático, uma espécie de iniciação na vida de adolescente.

            Não se tocou mais no assunto em casa - evidente sinal  de que a perda havia sido muito sentida pelo pai, pela mãe e, principalmente, pelo amargurado ginasiano.

 

 

            Os sapatos ganhos de outro  primo

            No Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues a maioria das crianças andava descalça. Costume e necessidade. Uns usavam uns tênis simplesinhos, quase sempre marrons e de solado fino, muito feios. Outros, um precário tipo de calçado posteriormente reabilitado por estilistas de renome - uma lona rústica aplicada a sola de corda. Isso mesmo, as alpargatas Roda, mais conhecidas por chinelos de espanhol.

            Ele, como tantos outros colegas, tinha um só par de sapatos que serviam para tudo - ir à escola, à missa, a outras poucas ocasiões sociais importantes. No resto do tempo, pés descalços, braços nus, como resumiu o poeta saudosista. Daí o ritual diário imposto pelas mães: chegava-se da aula e, antes de tudo, precisava-se tirar o uniforme (calças curtas azul-marinho com suspensórios cruzados às costas e blusa branca, ostentando no bolso um caprichado monograma CR com uns risquinhos abaixo, indicadores do ano em que o aluno estava) e descalçar depressinha os sapatos de ver Deus, consoante se explicava.

            Então um outro primo não propriamente rico, mas filho de pais abonados, ofereceu-lhe (e logo descobriria por quê) um par de sapatos praticamente novos, daqueles bem toscos, fabricados por um dos muitos sapateiros da cidade. “Esmola demais o santo desconfia” - era como se dizia então. Ele não tinha razões para pensar mal do generoso primo. Aceitou a dádiva  e andou por aqui e ali com aquela peça lustrosa, firme, dura mesmo. Era preciso lassear o calçado. Ao fim do dia, umas bolhas nos pés, a mais dolorida de todas no segundo dedo da direita, pé direito.

            Não disse nada a ninguém e continuou com crescente desconforto usando os sapatos doados, o tal dedo incomodando cada vez mais. Quando começou a mancar de modo mais visível, a mãe passou-lhe uma revista e ficou espantada com aquele dedo infeccionado.

            Levou-o à Pharmacia Nossa Senhora Apparecida, onde o Sr. Galileu Rondinelli, depois de lhe dirigir umas engraçadas reprimendas, aplicou-lhe dolorosa injeção antitetânica.

            Durante uns dias foi à escola como era de praxe à época e em situações análogas: com um pé descalço e outro calçado.

            O dedo lesado é até hoje diferente dos outros, porque portador de um visível e indelével calombo.

(15/11/2003)
(emelauria@uol.com.br)

 

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