Aos que me leem

  
O Museu e as torres

 

Diferentemente do que alguém poderia pensar, gosto de manter contato com meus eventuais leitores.

Se falam comigo na rua  a respeito do que escrevo, dou-lhes toda a atenção  e levo a sério as observações ou sugestões que me fazem. Se me telefonam, ouço-os com prazer. Se me escrevem, nunca deixo de lhes responder o mais amavelmente possível.

Não sei, mas um pouco pela idade, difícil de ocultar, outro pouco por antigas lendas locais que correram desde quando eu lecionava no Estado, outro tanto ainda por me considerarem por vezesdifícil” escrevendo, o certo é que de  repente ouço revelações assim:

-“ Eu escrever para o Sr.? – nem morto/morta!” , como se eu sentisse especial prazer em corrigir a escrita alheia...

É bem verdade que nos remotíssimos tempos em que o   Colegial e o Normal   guardavam  ainda um forte sentido seletivo, era da obrigação do professor de Português não deixar passar nada do que seus alunos falavam ou escreviam sem a esperada precisão. Não que sempre os corrigisse ostensivamente, mas de um modo ou de outro, quem cometesse o que um autor chamou com exageropecados contra a castidade da língua”,  não ficava sem chumbo e tinha sempre a certeza de que eu havia percebido seu erro... No final de minha carreira já  não fazia mais isso, quem sabe até pela certeza de malhar em ferro frio.

Muita gente deve ter-me detestado. Entre eles, porém,  nenhum dos muitos alunos que ingressaram nas melhores  universidades sem um dia de cursinho, nenhum   dos que adquiriram o hábito da leitura reflexiva e a capacidade de redigir com naturalidade e propriedade, nenhuma das  alunas tão atentas e aplicadas.

Lembro-me como exemplos de alto aproveitamento algumas classes do Curso Clássico que, pequenas, eram constantemente submetidas a trabalhos até penosos, a pesquisas intensas na Biblioteca, de tal forma que se estabelecia entre os professores e eles um salutar clima de colaboração de que não poucos se lembram com saudade até hoje. Evidente que esse rigor não era exclusividade minha, mas de todos os professores, notadamente os de Latim, Francês e Inglês. Ninguém continuava aluno do Clássico  dos anos sessenta e setenta se não estivesse convencido de que valeria a pena tanto esforço.

Esta mesma atitude de rigidez era característica do Curso de Letras de nossa Faculdade de Filosofia. Podia-se exigir muito dos alunos que, à semelhança do que também ocorre hoje, não tinham tempo para nada, mas o criavam com o sacrifício de horas de repouso e lazer. Os frutos eram  compensadores. Também nas avaliações de cursos que o MEC realizava, os conceitos desse Curso da FFCL sempre foram muitos bons, com alguns “B” que não foram “A” por causa de falta de espaço na Biblioteca, por deficiências físicas nas instalações,  por ausência de certos recursos audiovisuais.  

Nesse curso de Letras da FFCL, fui por bastante tempo professor de uma disciplina que existia no último ano: Prática de Ensino do Português. Era ali que os alunos, munidos dos conhecimentos específicos  e a par dos recursos da Pedagogia e da Didática, davam aulas  para os companheiros de classe e para mim... Procurei passar-lhes algumas verdades triviais, a mais importante das quais, talvez, a de que a base do sucesso de alguém como professor  se assenta principalmente no domínio dos conteúdos. Professor que sabe mal e mal os assuntos de sua área corre o sério risco de sair desmoralizado da sala de aulas. Sempre me pareceu que alguém, mal preparado, inseguro, nervoso à frente de um grupo de rapazes e moças, deve secretar pelo suor alguma substância que caracterize seu estado de pânico em face da situação, porque lhes faltaria exatamente a primeira das muitas condições de êxito no magistério – a firmeza nos conteúdos. Sem essa condição de saber o que deverá ensinar, de nada adiantarão recursos didáticos e uso maciço de audiovisuais. A comparação possível nessas circunstâncias é que a bagagem intelectual e cultural de um bom professor deve assemelhar-se a um iceberg, ou seja, a parte visível normalmente oferecida aos alunos corresponder a um oitavo do total da massa... De modo geral, não é essa a realidade cultural em nossas escolas.

Hojequem renegue ter passado por tanto sofrimento nesse tipo de aula, mas há a grande maioria que se diz  beneficiada pelo despertar de um espírito crítico e da necessidade de levar muito sério o ensino, o direito dos alunos quanto à correção e propriedade do que lhes seria transmitido em aula.

Agora, tantos anos depois ainda haverá quem não se sinta à vontade comigo, mas em compensação, recebo  belas provas de reconhecimento de ex-alunos do Euclides da Cunha e do Grafos que se tornaram advogados, médicos, jornalistas, engenheiros....

Esta é afinal, como diria o velho Machado, a honra que eleva, exalta e consola.

 

15/10/2016
emelauria@uol.com.br

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