COM REQUINTES DE INDIFERENÇA
O ÚLTIMO
DESEJO
Não é tão nova assim, mas não deixa de ser boa a história muito difundida do italiano que,
para não negar a raça, era um comilão daqueles. Tinha
necessariamente preferências
acentuadas por pratos dietéticos, do tipo
macarrão à bolonhesa, pernil de porco,
polenta,
dobradinha
a qualquer moda,
além de salames,
queijos, vinhos,
doces, cervejas,
licores,
refrigerantes.
Sempre que
advertido dos males causados por essas ingestões sabidamente
engordativas, que elevam às alturas as taxas
de colesterol, triglicérides e companhia bela,
saía-se com a
invariável
justificativa:
-- Na minha
família
sempre se comeu e bebeu assim e ninguém
morreu disso; não serei eu que vou quebrar tradições seculares...
O
que ele
não levava em
conta é que seu pai, seu avô, seu bisavô
tinham sido homens de trabalhos pesados, que
não rejeitavam
tarefas
ingratas como
capinar,
lombar sacos,
rachar lenha,
podar árvores,
cuidar de vacas,
carneiros,
cabritos.
Além de andar
muito:o dia
inteiro se movimentavam, faziam força, suavam, queimavam, enfim,
qualquer excesso
de lipídios. (Ah,
eles
nunca souberam
sequer
da existência de
lipídios.)
Ele não:
com a economia
familiar estável,
adquiriu modernas necessidades. Lá pelos
sessenta e poucos anos
foi passando as responsabilidades dos negócios para os dois filhos e se pôs a
gozar mais
a vida.
Aí um belo dia
ele começa a sentir-se mal,
vai ao médico,
que
lhe prescreve um
regime daqueles, para emagrecer mais de uma
arroba em
curto prazo.
Não conseguiu realizar
a façanha,
principalmente
porque comia às
escondidas
o que lhe
ficasse à mão,
desde
a compota de
pêssegos até o pão caseiro recheado com torresmo.
E foi piorando, piorando,
até cair em coma diabético.
Aí ele
sentiu meio
tardiamente a
gravidade
de seu estado.
Não tinha
acesso à
geladeira,
doces eram trancados a sete chaves, os
exercícios
físicos que
ele não
fez, começaram a mostrar a
diferença.
--
Não sei, não,
minha velha,
– ele
reconheceu um
dia
em que
estava a sós
com
a mulher. Não
sei.
-- Não
sabe o quê?
-- Não
sei se escapo desta...
E foi piorando, piorando.
Mal se levantava da cama,
aonde
lhe traziam uns caldinhos ralos e insossos,
umas frutas cozidas e sem paladar.
Um dia – aquele dia sem o qual esta
história não
existiria, ele,
que
passava muito
mal, sentiu um
suave odor de
coisa gostosa
que, saindo da
cozinha, chegava a seu
nariz
e lhe enchia a
boca
de água.
Perguntou ao
filho caçula
o que é que
estavam fazendo.
-- É a mãe
que
está aprontando uma fornada de pão de queijo.
Os
olhos do velho
italiano até marejaram de lágrimas:
--
Pão de queijo,
é?
--
Pão de queijo,
pai.
--
Então, filho,
vá conversar com
sua mãe
e lhe diga
que
estou com
muita
vontade de ao
menos
experimentar um
pãozinho de queijo,
tão
cheiroso...
O
filho foi, demorou-se mais do que
seria de se esperar e voltou
muito
desenxabido para junto da cama do pai.
-- A mãe
disse que
não vai dar nenhum pro senhor...
--
Nem unzinho?
--
Nem um,
pai. Ela
disse que
esse
pão de queijo
só vai ser
servido no velório.
O DESMANCHA-PRAZERES
Será
que alguém
que me
lê hoje
se lembrará de “O comprador de fazendas”, conto
antológico do meio esquecido Monteiro
Lobato? Pois é a fazenda
em decadência
onde se passa
a enredo, que
me vem à cabeça
quando procuro imaginar
a cena da
história
(dizem que
muito
antiga, mas
verídica), acontecida longe, muito longe daqui.
É
que a casa
da fazenda,
antes rodeada de
imensos
cafezais, foi o que restou à família, depois
de três ou
quatro gerações
de vida à
larga,
com festas,
estroinices, prodigalidades e desperdícios.
A cada aperto
financeiro, lá
se ia um pedaço
de terra cultivável, logo
transformado em
sítio
de propriedade
alheia. Ao fim,
só
a casa da
fazenda
mesmo, porque
até o grande
pomar acabara loteado e vendido a tantas
pessoas que
ali construíram
casas
agradáveis, tão
perto da cidade.
A
notícia de que
a filha mais
velha do decadente
fazendeiro
ia ser pedida
em casamento por advogado de
fama, dono de
apreciável
fortuna
resultante (diziam) de seus êxitos profissionais, a notícia
tão auspiciosa
encheu de júbilo a
família
inteira. Um
bom casamento
podia ser o começo
de grande
desafogo
financeiro:
afinal
eram oito mocinhas
ou
meninas que no
matrimônio
se poderiam livrar
de uma vidinha sem
graça,
sem futuro,
sem as larguezas
passadas de que
só ouviam dizer.
Deram uma caprichada
geral no casarão,
aquele de vastos
cômodos com
assoalho de tábuas largas, janelas
amplíssimas, forros de taquara trançada. Só
não puderam fazer
nada num quarto
– o do pai do
proprietário,
entrevado de
reumatismos,
peito chiante de
bronquite
e nicotina. Respeitaram a
resistência
do velho --
afinal
o doutor
advogado
nem precisava ficar
sabendo da existência daquele
homenzinho
decrépito, que
contribuíra fortemente
para
as desgraças
familiares.
E
assim, entre
receios e
sobressaltos,
entre despesas
imprevistas e até
descobertas
de objetos perdidos
aqui
e ali na
imensidão
da casa mais
que centenária,
chegou o dia do
pedido.
Dentro do
possível,
até que
tudo estava muito
bem para a cerimônia da formalização
do noivado, se o velhinho entrevado não
levasse a tamanho
extremo
a sua resistência
à invasão de
privacidade. Ele resolveu simplesmente
morrer, pouquíssimas horas
antes da chegada
do doutor
advogado
e seu séqüito
de mãe, pai,
parentes e
padrinhos.
--
Mas que
boa peça nos
prega o papai!
Adiar a festa – impossível. Conciliar noivado e velório – nem pensar. Não tirar proveito dos gastos
feitos --
insuportável falta de habilidade.
Até que... De quem a solução tão simples e barata? Nunca
se apurou: transferir
imediatamente
o mirradinho corpo do falecido para uma casinha meio
escondida lá no
fundo
do quintal,
um
misto de paiol
e depósito de
ferramentas,
coisas inservíveis.
Encarregar
uns agregados para
providenciar
imediatamente
a papelada no cartório
e reunir umas poucas
pessoas
de confiança para
enterrarem sem
mais
delongas o
outrora
importante
fazendeiro, reduzido finalmente
a pessoa
importuníssima pela
hora
que resolveu passar
desta para melhor.
Oficializou-se o
noivado, marcou-se a data do casamento para futuro próximo. Tudo se
realizou nos
conformes,
em ambiente
de discreta
alegria
e de esperançosas perspectivas.
Do
avô – ninguém
mais se lembrava,
mesmo.
15/10/2005
(emelauria@uol.com.br)
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