De sabiás, bibliotecas, etc.
ARAUTO DA PRIMAVERA & RELIGIÃO SUCINTA No primeiro domingo de setembro, missa das dez. O canto do sabiá parecia vir de fora, da praça ao lado. Na hora da homilia, ele se mostrou, enfim, de corpo inteiro, peito aberto. Dividiu com o paciente sacerdote as atenções do grande público. Cantou o tempo todo, voejou lá no alto, cortejou a fêmea. Um passarinheiro me garantiu que ele faria ninho ali mesmo no desvão de uma alta coluna. * No segundo domingo o sabiá não interrompeu o pregador, que ficou sem palavras com a desembaraçada presença daquele senhor de bermuda, sandálias, camiseta regata, capacete de motoqueiro à mão, que subiu ao altar, fez suas reverências, persignou-se e foi embora de alma leve, seguro do dever cumprido.
LIVROS DE PESO Mesmo tendo gostado da foto de livros que expus na semana passada, muita gente desaprovou a legenda: “Depósito de cultura inútil”. Tento explicar melhor, partindo da verdade elementar: eles me foram muito úteis; relativamente úteis para meus filhos; menos, muito menos, para meus netos. Inúteis serão para meus bisnetos, porque o conceito de cultura mudou, as leituras são outras. * Quem se interessará, por exemplo, em conhecer a copiosa produção dos grandes vultos da literatura portuguesa, de Camões a Camilo, de Vieira a Eça de Queirós? Ou todos os livros de Machado, Euclides, Rui, Alencar, Graciliano? Se algum deles for indicado para assunto de vestibular, ainda haverá leitores compulsórios. Caso contrário, o esquecimento. * Dos escritores de além-mar, Fernando Pessoa e José Saramago é que têm público no Brasil, e olhe lá. Vejo na internet trechos atribuídos a um Fernando Pessoa que não passa de contrafação do verdadeiro, daquele mais conhecido por sua frase O poeta é um fingidor, finge tão completamente, etc. José Saramago, que considero de leitura pouco prazerosa, já viveu seu breve momento de grande prestígio, mais pela fama de ganhador do Nobel. Hoje sei de quem até compre seus livros, desde que não haja obrigação de lê-los! * Não se tenha dúvida a respeito do triste fim de nossas bibliotecas particulares, formadas com sacrifício através dos anos. Conheci uma, riquíssima, de meu antigo professor. Após sua morte, alguns exemplares foram doados a uma faculdade. Os demais, aos milhares, acabaram descartados como papel comum, aos quilos. Não deverá ser diferente com as velharias que eu tanto estimo e me custaram boa parte da suada economia de um longo magistério.
UMA PROSINHA COM O CRAQUE Não formamos uma confraria, como chegou a haver no Centro Cultural Batista Folharini, antes de seu exílio para as lonjuras e baixuras da rodoviária. Quando podemos (e temos podido quase sempre), comparecemos no fim da manhã à reunião informal nuns bancos de jardim, ao lado do Cruzeiro do Milênio, em frente à antiga Nossa Caixa. O papo daqueles senhores madurões é variado, colorido, com lances de humorismo e certeiras observações sobre pessoas presentes e ausentes, sobre acontecimentos de agora e de outrora. * Um dia destes, com o testemunho presencial de meu colega de Câmara Municipal Valdir Zanatta, o Boizinho, rolou uma comprida prosa com Modesto, o zagueiro que saiu daqui e brilhou em tantos clubes, principalmente no Santos F.C., em plena era Pelé, aquele mesmo Pelé a quem muitos de nós corinthianos justamente xingamos durante os anos de chumbo em que ele fez nosso time do coração amargar derrotas e mais derrotas. * Claro que não me caberia despertar em Modesto reminiscências que envolvessem o maior camisa 10 que o mundo conheceu. Gostei de um caso mais nosso que ele recordou um dia destes. O velho Rio Pardo F.C. foi jogar na vizinha São Sebastião da Grama. Por razões que não vêm ao caso, o meia-esquerda Gim Marin, driblador dos bons e disciplinado atleta, acabou expulso pelo juiz, quem sabe tão imparcial quanto o são até hoje os árbitros locais. Gim, aborrecido com sua expulsão, sentou-se junto com outros jogadores reservas, à beira do campo. Lá pelas tantas, com o Rio Pardo no ataque, a bola passou tentadoramente perto de Gim, que não teve dúvida, entrou no gramado, controlou a pelota, avançou, passou por dois ou três e marcou um belo gol, sendo muito festejado pelos companheiros e muito ofendido pelos adversários. Claro que o juiz anulou o ponto e reexpulsou o competentíssimo atacante. * Lembro-me bem da sensação causada por um ato de coragem praticado por Gim Marin, lá por 1945, 46, quando o senso do profissionalismo despontava no futebol do interior paulista. Formado no Rio Pardo, quando ainda seu campo era ruim, cercado de pontiagudas grades de madeira, sem arquibancada e com muito eucalipto para dar sombra, de repente Gim recebeu proposta de assinar contrato com o grande adversário local: a Associação. Uns tantos mil cruzeiros de luvas e tentador ordenado mensal, coisas impensáveis à época. Foi um escândalo! Já se viu alguém virar bandeira assim? O fato é que Gim ganhou um bom dinheiro e jogou muito bem pelo seu novo clube, que teve ótimo desempenho nos anos seguintes. * Gim dependurou as chuteiras, continuou com sua selaria aqui na ponta da Praça Prudente de Morais com a Rua Silva Jardim. Evitava falar de futebol, mas na hora decisiva os corações falaram mais alto: quando ele precocemente morreu, seu caixão foi recoberto com a bandeira do Rio Pardo.
COLEGA DE REMOTAS ERAS Funcionário da Cooxupé, que já trabalhou na filial de São José, avisou-me outro dia, por e-mail, que uma velha tia dele havia falecido em Belo Horizonte. Tinha lido aqui nesta coluna que ela fora minha colega na Escola Normal Euclides da Cunha, turma de 1949. Amélia Bárbara Bueno o nome dela. Os apelidos que nós, rapazes, lhe pusemos não deveriam tê-la desagradado – Vespa, dada a sua finíssima cintura, e Anjo, pelo toque etéreo de sua bela presença. * Como sentir a morte de uma pessoa ausente por mais de sessenta anos e com quem jamais troquei uma linha nessa pequena eternidade? Ela não compareceu às nossas comemorações dos vinte e cinco, dos trinta e dos cinquenta anos de formatura. No entanto, senti sua morte. Marina, minha falecida mulher, queria-lhe muito bem, chegando a lhe dar hospedagem por algum tempo. Amélia Bárbara era mineira de Nova Resende e viera morar em São José apenas para se formar professora primária. * O que me ficou de Amélia Bárbara foi a imagem de pessoa a um tempo vaidosa e recatada, preocupada com detalhes mínimos de rosto, roupa, mãos. Nela havia delicadeza nos gestos, capricho na letra, fineza no trato. E também alguma coisa frágil, ressaltada pelo verde dos olhos e loiro dos cabelos, algo como um bibelô.
15/09/2012 |