O sereno entrevistado(r)

Não posso negar que aceitei com certa má vontade o pedido de meu amigo José Rueda para dar entrevista a um pessoal que estaria por aqui a serviço de uma revista de culinária.

Pronto, pensei cá comigo, o Zé Rueda, muito orgulhoso do sucesso nacional do filho Jefinho, mestre-cuca dos bons,  vai me colocar numa enrascada.

- O que é que eu vou dizer de interessante a  quem sai de São Paulo com a finalidade de procurar por este interiorzão paulista  algumas novidades sobre receitas familiares perdidas em fundos de baú, ou  bebidas artesanais com fórmulas transmitidas de pai para filho, assim ao pé do  ouvido, como segredos de estado, ou ainda técnicas artesanais de confeccionar linguiças, salames, queijos frescos e curados – tudo como os bisavós faziam na Itália há século e meio?

Pior de tudo, extrapolei, é que vão querer misturar isso aí com o centenário da morte de Euclides da Cunha. Vai ser uma luta ficar repetindo trivialidades sobre a vida dele, sobre seu drama familiar. Sim, porque perguntas interessantes sobre a obra euclidiana são difíceis de aparecer, exatamente porque quase ninguém lê nada de nada, muito menos de Euclides, sabidamente um escritor difícil...

Mas não havia como escapar ao pedido do Zé Rueda, ainda agora que ele está  feliz da vida com seu corpinho de quase bailarino espanhol.

E então, na tarde-noite de 30 de julho desembarcaram em minha casa os dois Ruedas e duas outras pessoas – o entrevistador e o fotógrafo.

 

 

- Muito prazer. Eu sou Thomaz  Souto Corrêa.

- Thomaz Souto Corrêa? Eu o conheço...

-  De onde?

-  De leituras no Estadão, do Jornal da Tarde...

-  É verdade, trabalhei lá há muito tempo...

- Além disso, você é constantemente citado por Telmo Martino, o ferino cronista de passadas décadas, cujas tiradas mais agudas estão reunidas no recente livro Serpente encantadora, anunciado como o veneno e a doçura de Telmo Martino no Jornal da Tarde, de 1975 a 1985...

 

 

-  Telmo me chamava de caipira, como se isso me ofendesse. Não o conheci pessoalmente e hoje nada sei dele.

 

O fotógrafo era barbudo, cabeludo, por sobrenome Martinelli.

- Pedro Martinelli, já me explica Thomaz Souto Corrêa, é dos mais renomados fotógrafos brasileiros. Basta você saber que ele morou seis anos em um barco na Amazônia, e registrou aquilo  tudo em milhares de fotos, muitas correndo mundo. Ganhou prêmios e prêmios.

Thomaz e eu falamos de conhecidos comuns, em particular de Arnaldo Magalhães de Giácomo, homem forte da Melhoramentos de outros tempos. E euclidiano apaixonado, discípulo de Hersílio Ângelo, de quem fora sincero admirador. Arnaldo morreu de repente, e muito cedo. Um dos irmãos de Arnaldo foi meu colega de escola.

Sua irmã Sônia, muito delicada de feições, virou bela lembrança de uma época recuadíssima. Conheci também o pai deles, Domingos, que há uns sessenta anos dirigiu a execução do calçamento com paralelepípedos de nossas ruas centrais. Dispunha de excelentes calceteiros que fizeram  trabalho  até hoje  perfeito nos locais em que não foi remendado, por causa dos vazamentos nos canos de água ou nas manilhas de esgoto..

Thomaz é desses entrevistadores que também se deixam entrevistar, mesmo porque tem cultura e vivência que o põem a par de tudo. Fala sem nenhuma jactância da alta posição que hoje ocupa: vice-presidente editorial da Abril.

Ele não me pergunta o que outros já perguntaram, pois além de tudo,  não quer focar nossa conversa em Euclides, Semana Euclidiana, centenário de morte. Encanta-o saber que os rio-pardenses emigrados para longe, especialmente São Paulo, não se esquecem da terrinha, da família, dos amigos e voltam sempre, reúnem-se. Fala então de sua distante Mirassol, que ficou mais de trinta anos sem rever. Admira-se com uma frase (não é minha) que lhe repeti a respeito da transmissão da propriedade da terra em São José. Digo-lhe que por aqui, a reforma agrária  foi feita na cama, porque grandes fazendas foram subdivididas entre herdeiros de diversas gerações, de tal forma que em alguns casos o quinhão de alguns não atinge hoje sequer o módulo mínimo do INCRA. Quer saber por que há tantos nomes italianos na cidade e recebe a justificação histórica: os fazendeiros das últimas décadas do século XIX precisaram recorrer à mão de obra de imigrantes para a substituição do trabalho escravo, abolido pela Lei Áurea. Em pouco tempo, os ativos italianos deram feição nova à  pequena vila. Intrigam-no duas grandes placas que ele avistou na via de acesso ao centro  – uma  anunciando reuniões dos alcoólicos anônimos e outra dos neuróticos anônimos. Garante que nunca viu nada assim, em nenhum lugar...

Viúvo recente, eu ainda não me preparei para acolher bem as visitas, de forma que nossa longa prosa foi a seco, sem comes nem bebes. Apesar disso, durou quase duas horas. Eu lhes disse que tinha gostado muito daquele encontro cordial; eles também, não sei se por mera cortesia.

Quando, terminada a nossa conversa,  eles se acomodaram num desses carrões japoneses que batem longe até um Ômega, desses causadores de tanta celeuma por estas bandas, Thomaz me disse que o sisudo e luxuoso Toyota preto era alugado pela Abril  para viagens mais ou menos longas. Mais uma vez pude avaliar o prestígio dele e de Martinelli na editora.

Depois que a comitiva entrevistadora foi embora, procurei ver o que o Google falava daqueles visitantes tão especiais.

A respeito de Thomaz, há mais de oitenta mil referências, falando dos cursos de jornalismo que ministrou, da história  das revistas que escreveu, de suas tiradas de efeito, do futuro da Veja, da falta de espaço para o relançamento de revistas do porte da Realidade... Indagado, numa entrevista, sobre a razão da diminuição da tiragem dos semanários, tem  uma tese surpreendente:

- Minha suspeita é que os leitores estão morrendo...

Sobre seus mestres de jornalismo, destaca Oliveiros Ferreira. O que talvez Thomaz nem saiba é que esse  retirado diretor-redator do Estadão é rio-pardense de nascimento, embora raras vezes tenha revelado isso... Sua irmã Noêmia Ferreira de Andrade é viúva do sempre lembrado Olímpio de Sousa Andrade, nascido aqui em Venerando e autor da notável História e interpretação de “Os sertões”.

Pedro Martinelli também tem um mundo de inserções no Google, fotos belíssimas como essas que agora reproduzo.

Minha pergunta final teve sua razão de ser: para que revista eles estavam colhendo material? E sua resposta foi, quando menos, original:

- Ainda não escolhemos o nome. Estamos pensando em algo que fale não só de comidas e bebidas, mas que misture com originalidade os assuntos e as opiniões.

Agora é esperar para ver o que dá... Quem sabe nossa conversinha tão amável sai no número zero de uma nova publicação...

No domingo, 2 de agosto, dei de cara com os quatro na Churrascaria do Gaúcho, lá pelos lados da Nestlé. Conversamos rapidamente e Thomaz ainda fez segredo da revista em que aparecerá sua reportagem sobre nossa cidade. Disse que estava cumprindo o dever de mostrar a seu neto que frango é muito mais do que aquela  coisa disforme e congelada que se compra nos supermercados. Ah, bom!

Despediu-se de mim com uma caipirinha na mão e esta frase enigmática:

- ODEIO colesterol!

 


Garotos da Amazônia, de Pedro Martinelli

 


O 1º de Maio, outra foto premiada de Martinelli

 

15/08/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

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