Esses ilustres desconhecidosO Osmar da farmácia, enquanto me picava com sua agulha de injeções oleosas, boas não sei bem para quê, perguntou-me se eu conhecia as coisas desta nossa cidade. Caí na besteira de dizer que sim e então ele de cara me desafiou: -- Onde fica a Rua Assis Chateaubriand? Pensei em pedir auxílio à prodigiosa memória do Waldomiro Custódio, que tem na ponta da língua os nomes e a localização de todos os nossos logradouros, mas achei que não caberia interromper a injeção e a prosa que fluíam tão bem. -- Nem sabia de sua existência... -- É isso, ninguém sabe. E o pior: ninguém sabe quem foi Assis Chateaubriand. -- E onde ela fica? -- É uma rua muito pequena que começa onde era o pórtico do extinto aeroporto das Macaúbas... -- Ah, bom. Mas o que teria levado alguém a se lembrar de Assis Chateaubriand, que não deve ter tido a mínima ligação com a cidade?... -- Teve, sim, o primeiro avião do nosso aeroclube foi doado pela Campanha Nacional da Aviação, uma das muitas iniciativas do jornalista, dono dos “Diários Associados”, uma poderosa organização, à sua época comparável à Rede Globo de hoje. Então eu coloquei a memória a funcionar, recorri a embolorados arquivos de cinqüenta ou mais anos passados e me lembrei de certas coisas que talvez jamais me acorressem, não fosse a caprichosa espetada do Osmar. A Campanha Nacional da Aviação destinou-se a criar o maior número possível de aeroclubes, a doar a cada um deles ao menos um teco-teco e a despertar na moçada o gosto de voar. O primeiro aviãozinho que veio para o aeroclube de São José, lá por 1946, chamava-se (adivinhem!) Os Sertões, cujo prefixo, se eu não estiver redondamente enganado, era PP-RBD... Esse prefixo PT- é inovação bem mais recente. Cheguei a dar umas voltinhas nele, gozando a inesquecível sensação de ver a cidade lá do alto. Quem me levou para as alturas (a primeira vez na vida) foi Castor de Carvalho, mecânico da agência Chevrolet, da família Nasser, e um dos apaixonados pelo vôo. Creio que ele aprendeu a pilotar com Juvenal Paixão, o primeiro instrutor do aeroclube, que por ter morado uns tempos numa casa alpendrada e isolada, próxima a uma floresta urbana, acabou dando a esta um estranho nome – a mata do Paixão, que muita gente erroneamente chama ou chamou de mata da paixão, quem sabe antevendo as cenas de erotismo explícito que depois ocorreriam nas suas proximidades. É de minha autoria a lei que assegurou à mata do Paixão (ou do Carneirinho) a condição de “área de preservação ambiental”. Releio o parágrafo e percebo quantos assuntos estão embolados nele, mas de duas uma: ou meu leitor tem experiência de vida rio-pardense para entender o que expliquei, ou não a tem e então nem adiantaria querer explicar. Os aviõezinhos da Campanha eram em sua maioria os monomotores americanos Pipper ou os brasileiros Paulistinha, fabricados pela família Pignatari. Ajudaram na formação de milhares de pilotos civis que se beneficiaram ainda de relevante vantagem: o brevê dispensava seu titular de prestar serviço militar. Ele passava a reservista da Aeronáutica. Não se sabia nada a respeito dos métodos empregados por Chateaubriand na tarefa de convencer os ricaços do Brasil todo a doar aviões para os aeroclubes ou quadros para o Museu de Arte de São Paulo, fundado por ele, sob a orientação de Pietro Maria Bardi. Tudo isso está explicado tintim por tintim no admirável livro Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais, acabado exemplo de biografia crítica, pesquisada à exaustão por uma equipe de mais de vinte pessoas. Quem quiser ter uma visão muito nítida da política brasileira na primeira metade do século XX não pode deixar de ler suas mais de setecentas páginas publicadas em 1994 pela Companhia das Letras. E então? Há nesta cidade uma pequena rua chamada Assis Chateaubriand, situada onde foi a entrada de um desativado campo de pouso. Quase ninguém nada sabe a respeito de seu patrono, como quase ninguém nada sabe a respeito dos homenageados em outras tantas ruas, praças e avenidas. Dante Artese, filho e admirador incondicional do jornalista Paschoal Artese, nunca perdoou minha oposição na Câmara a um de seus anseios mais acalentados: fazer o município dar o nome de seu pai à Praça Barão do Rio Branco, onde se situa o casarão da família, recentemente vendido e agora em obras de restauração. Felizmente, porque se trata de testemunho arquitetônico de inestimável valor.. Não é que faltem provas do reconhecimento da cidade ao combativo proprietário-diretor-redator-distribuidor do jornal Resenha: a hemeroteca, primeiro instalada na Faculdade de Filosofia e depois anexada à Biblioteca Municipal, tem seu nome, assim como um belo prédio de consultórios e escritórios erguido ali na Rua Dr. Costa Machado, início da Avenida Independência. No Altar da Pátria, Praça dos Três Poderes, por iniciativa do prefeito Lupércio Torres, há uma placa de homenagem a ele. Ah, também se chama Jornalista Pascoal Artese (isso não me parece justificável) o centro de convivência da terceira idade, na área de lazer situada atrás do ginásio de esportes – o Tartarugão. Se houve situações muito raras na vida do velho Artese, uma delas terá sido a pacífica convivência com quem quer que seja. Quantas pessoas sabem algo a respeito de Floriano, Deodoro, Prudente de Morais, Campos Sales, Silva Jardim, Benjamim Constant, Rui Barbosa – a flor do republicanismo brasileiro? Se nada sabem destes vultos de nossa história maior, o que saberão dos tantos personagens de nossa história doméstica, muitas das quais viraram nomes de logradouros públicos apenas porque aqui nasceram, aqui viveram e aqui morreram? Nem se pense que esta falta de ligação entre o nome dos homenageados e seus feitos seja fenômeno local. Em lugar nenhum do Brasil as pessoas estão a par de nada nem demonstram o mínimo interesse em inteirar-se de qualquer assunto que fuja um pouco à trivialidade do dia-a-dia . Exemplo cabal disso tive quando há alguns anos precisei passar tempo maior do que o esperado na cidade mineira de Camanducaia, terra natal de Francisco Escobar, o amigo dileto e definitivo de Euclides da Cunha. A praça central da cidade chama-se Senador Francisco Escobar. Eu tinha euclidianamente obrigação de saber muita coisa sobre o intendente de São José do Rio Pardo que deu ao autor de Os Sertões uma notável “assistência de carinho”, conforme está numa placa da redoma que resguarda o escritório de sarrafos e zinco. Tinha de saber também que ele havia sido senador estadual, uma invenção mineira que felizmente não se propagou pelo País todo. Fazendo-me de curioso apenas, indaguei do prefeito de Camanducaia, ele mesmo o médico que atendera minha mulher numa grave emergência, quem tinha sido o tal senador Francisco Escobar. Bem que ele fez algum esforço de dar tratos à bola, mas acabou achando melhor render-se à verdade: -- O Sr. vai me desculpar, eu deveria saber quem foi o senador Francisco Escobar, mas sinceramente não sei. Mudei logo de assunto, para não causar constrangimento algum ao historicamente desinformado prefeito, porém médico dos mais atenciosos.
15/07/2006 |