Nascem os homens
O jovem papai não coube em si: para anunciar, em alvoroço, a chegada do primeiro filho, postou na internet mensagem de intenso júbilo e fotografias do saudável herdeiro, com aquela ainda sofrida fisionomia de recém-nascido que não sabe a que veio. Salutar o gesto, coisa de gente moça, criada com as facilidades da informática, que tudo quer registrar, como se a documentação do fato fosse mais importante do que o próprio fato. * Não esqueci as alegrias que senti ao nascimento de cada um de nossos cinco filhos, mas não disponho de prova alguma de ter escrito cartões a alguém ou de haver telefonado nem para os parentes mais chegados. Fotografias aos montes ou gravações dos primeiros vagidos, nem pensar. Os tempos eram bem outros, tudo se procurava guardar na memória, apenas, à custa de relatos repetidos e retransmitidos pela oralidade familiar. * Há poucas semanas, uma revista semanal de larga circulação publicou o estudo sobre uma das mais antinaturais atitudes que mulheres podem tomar: renunciar consciente e solenemente à prerrogativa de serem mães. Quase sempre, são bem-sucedidas executivas, impecáveis no vestir, no falar, no andar e com todas as horas tomadas, com o pensamento voltado só para aquilo – o êxito profissional em carreiras da mais agressiva concorrência. Nenhuma delas, em suas elaboradas exposições de motivos, fez referência ao medo que possam sentir ao potencial risco de tristezas, decepções, porque nada mais verdadeiro do que o verso que reduz o ser mãe a padecer no paraíso. * Malgrado a inflexível determinação dessas mulheres tão poderosas e tão frias, entram no mundo, todos os dias, milhares de seres pequeninos e sonolentos, que pouco enxergam, não escutam, nada sabem e quase que apenas dormem. Através dos tempos, por vezes até a mais provecta idade, eles receberão os recados socializadores de todos os homens. Aprenderão no devido momento que o céu é azul, as árvores são verdes, que o fogo queima, a água afoga, a droga mata, as mulheres são misteriosas e os sabiás loucos por mamão e laranja . Muito lhes será ensinado, incluídas coisas erradas, antiquadas e outras que eles mais tarde verificarão não terem a menor importância, mas também repassarão aos filhos, aos filhos dos filhos e até aos netos dos filhos, se a longevidade lhes permitir. Alguém apresentará Deus e santos aos pequeninos; fulano exaltará a necessidade social de andar limpo, de mostrar forçada deferência aos mais velhos e às mulheres; beltrano, do bom-tom de responder às mensagens de parabéns e de pêsames. Sempre alguém lhes estará ofertando, extraídos de imenso depósito público sem dono, noções e conceitos, preconceitos e superstições com que o neném-menino-rapazola-garotão-homem-feito se sentirá armado para os embates da vida. * Ao lhes ensinarem, homens e mulheres lhes passarão, discretamente, as perplexidades de cada um, a entrega aos vícios e paixões, a lembrança de que não convém jamais deixar de ser duro, se possível sem perder a ternura, em gesto de autodefesa. Ah, sim, ficarão sabendo com espanto que o homem é lobo de outro homem, que alcateia não é coletivo de leões, nem récua de camelos. E assim, calejados para o mundo, jogarão xadrez ou frescobol, empinarão papagaios bancários ou aeromodelos, controlarão seus orçamentos ou seus estômagos, amarão sua(s) mulher(es) e de vez em quando, em meio a tantas coisas boas, sentirão vontade de sossegar, de morrer, até. * Muito visível a cada vez menor importância do homem, do macho, na perpetuação da espécie. Não há, em verdade, a menor possibilidade de comparação entre a consciência funcional da mãe e a do pai de um recém-nascido. Se o casal tem a foto ou o vídeo dos primeiros dias do primogênito, as coisas já se mostram com nitidez. O pai, de pé, sério, mas uma espécie de vulto pouco nítido, pouco mais do que uma sombra que vai sumindo, como que esmagado sob o peso da triste descoberta: ele já não tem relevância. Uma vez dado o definitivo gemido do amor criativo, ele entra numa espécie de agonia metafísica, porque já cumpriu o papel essencial, passou o seu próprio ser a outrem. * A mãe que traz nos braços o seu primeiro filho varão compõe o quadro eterno, de insuperável, solene e doce beleza, tema dos mais gratos aos artistas de todos os séculos – a Madonna e o Bambino. Mãe que será necessária por muito mais tempo, por dar a ele seu leite, sua substância, seu calor, seu beijo, sua proteção. Nem sempre a vida lhe compensará tamanha doação: nada impedirá que, invocando razões das mais variadas, o filho ingrato acabe deixando-a para um canto, como algo já sem função. A cada dia mais e mais essa triste hipótese vem se concretizando. E como será o futuro das poderosas de hoje, perdida a força da beleza, a lucidez da persuasão, a gana de viver intensamente cada dia de vitórias? * “Honrarás pai e mãe”, impõe mandativamente a divina lei. Sim, porque há de ficar bem claro: não se trata de algo para cumprimento futuro, mas de preceito permanente. Ninguém se iluda com a forma verbal. Por um hebraísmo que as versões clássicas mantiveram, honrarás é imperativo que vale desde sempre. Nada que permita a filho algum pensar em prestar a pai e mãe apenas honras fúnebres, como se um mausoléu compensasse omissões e ingratidões. * Verdade seja dita. Pais existem que, deixados à margem, afastados da vida, disfarçadamente mortos, reagem com forte senso de crueldade às circunstâncias. Muito devagar e com astúcia, vão passando aos filhos todo o peso de uma longa miséria, todos os volumes inúteis que carregaram sem saber por quê, pois apenas os mandaram carregar. Tantas vezes à custa da própria alegria de viver dos filhos, o que querem é ficar mais leves para o fim da caminhada. Chantagem emocional das mais danosas. * E assim, com a rapidez que dizem ser vertiginosa na visão retrospectiva de vidas à beira da morte, cumpre-se a trajetória humana dos meninos de todas as gerações, mesmo daqueles que nasceram como verdadeiros frutos do amor, que encheram mãe e pai da mais inalcançável das esperanças: que eles fossem perfeitos como anjos, limpos de toda mácula e que apenas puderam ser humanos, com toda a carga significativa que o termo encerra.
15/06/2013
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