LIVE! (AO VIVO)

 

Fundamentalmente a literatura (e por decorrência o teatro, o cinema, a novela de televisão) vive da ficção. Alguns teóricos chegam mesmo a dizer que se quiser reduzir-se  literatura a uma só palavra, esta será ficção.

Consideradas as grandes obras das literaturas de todas as línguas, em todos os tempos, comprova-se que o elemento ficcional se faz presente tanto na prosa quanto no verso de quase todos os textos que conseguiram vencer a grande prova da superação do tempo. As exceções ( e Os sertões é, em língua portuguesa, a mais expressiva delas) ficam por conta da genialidade de seus autores, que se valem de efeitos retóricos especialíssimos para substituir a ficção, impossível de prevalecer em contextos que querem manter a fidedignidade dos documentos, a verdade dos fatos.

Haverá sempre a dificuldade, quase insuperável, de fazer-se a delimitação dos campos, para se estabelecer até onde vai a realidade narrativa e onde tem início a capacidade ficcional  dos autores.

Os mais vulgarizados versos de Fernando Pessoa, o maior poeta português depois de Camões, tratam exatamente dessa inevitável presença ficcional na obra literária. Tomando-se num sentido mais amplo o termo poeta, com sua carga etimológica de criador, avalia-se melhor  a profundeza da quadrinha pessoana:

                                               

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente,

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente...

 

Toda esta longa volta foi dada para convencer, antes a mim mesmo do que a meu eventual leitor, de que o enredo de um filme que vi recentemente num canal pago de televisão jamais poderá/deverá passar de mera obra de ficção. Se passar, será muito mau sinal.

O título dele está lá no alto da página. Não me preocuparei em valorizar nem diretor, nem artistas. Vou direto ao assunto.

Uma jovem roteirista de TV, com uma carreira cheia de altos e baixos, procura por todos os meios a fórmula mágica de criar e apresentar um programa que seja garantia de sucesso. Os obstáculos que surgem são vários e de todas as espécies. Um projeto fica dormindo na gaveta de um figurão qualquer; outro não arranja patrocinador corajoso; este, ousado, com certeza baterá contra a barreira quase sempre intransponível dos defensores da moral pública e dos bons costumes; aquele jamais receberá o aval dos censores disfarçados que querem, com toda a razão, impedir que as cenas mais cruas de TV incitem ao risco de vida, à apologia das soluções antiéticas, ilegais e/ou antidemocráticas.

Vagarosamente vai ganhando massa na cabeça da roteirista a ideia de que era preciso mostrar ao espectador comum casos comuns de cidadãos comuns que lutavam contra forças acima de sua capacidade de superação. E assim, as partes autônomas, componentes de um futuro e inesperável espetáculo,  vão chegando a uma forma concreta. Entre elas:

  • O caso triste do fazendeiro que toca a todo o custo a fazenda que fora aberta por seu bisavô, um sueco decidido, há mais de cem anos. Ele e a mulher lutaram corajosamente até contra a opinião dos médicos no caso da doença do filho único do casal. Para salvá-lo, gastaram o que tinham e o que não tinham, tendo mesmo hipotecado a fazenda. A situação deles é terrível, porque não veem saída para seus males,  a não ser através de um milagre, como dinheiro caindo do céu.
     

  • A vida sofrida de uma cantora de boa voz, esforçadíssima, que sonha  conquistar o êxito profissional através de seu honesto e constante esforço próprio, mas não recebe apoio suficiente de ninguém.
     

  • O rapaz negro, vocacionado para a literatura, que conclui a redação de seu romance, na opinião dele um sucesso mais que garantido, que não tem, contudo, como fazê-lo vir a público.
     

  • O raquítico ex-drogado que quer ser reinserido na sociedade, mas encontra mil barreiras e se vê muitas vezes tentado a pôr fim trágico à própria vida.
     

  • O mexicano com sua dupla carga de males, além de ser mexicano em terra alheia:  ser pobre e homossexual.

 De posse desse material humano tão díspar e tão sofrido, a roteirista de TV imagina um programa de extremo suspense, transmitido ao vivo para todo o país. Depois de muito batalhar, consegue patrocínios milionários, de modo a garantir para cada um dos participantes – menos um – a bolada de cinco milhões de dólares, quase oito milhões de reais.

O esquema é simples: a roleta-russa – um revólver carregado com uma bala verdadeira e as outras cinco inofensivas. A ordem do enfrentamento de tão grande risco pelos participantes daquela arrepiadora aventura ao vivo e em alta definição é determinada por sorteio.

Em clima de altíssima tensão, vão os candidatos sorteados enfrentar a sua sorte, frente às câmeras. Lá vai o primeiro, e clique! – o gatilho picou uma inocente bala sem explosivo! Alegria e profunda emoção dele, de seus familiares, do pequeno auditório, do país todo! O ibope, medido instantaneamente, já chega aos 18 pontos, um belo índice. E tome cheque de cinco milhões.

O segundo passa ileso, e o ibope a 30... Mais cinco milhões.

O terceiro também, e o ibope a 40... Outros cinco milhões.

O quarto idem, e o ibope superando os 50, igualando o índice do último programa da série famosa, Seinfield. Cheque de cinco milhões entregue.

O quinto, o rapazinho triste, ex-viciado, rejeitado pela família, pela sociedade! E está lá um corpo estendido no chão, com a cabeça arrebentada pela bala de verdade!

Só ficou fora da duríssima prova o fazendeiro falido. Ele e sua esposa recebem o cheque com o dinheiro suficiente para tudo, até para ressuscitar a fazenda.

A roteirista permaneceu ali, transtornada, ao lado do corpo inerte do malogrado candidato, sem saber o que fazer, como se o desfecho do macabro programa não devesse ser exatamente aquele. Nisso, da primeira fila de assistentes, levanta-se um homem e, com a frieza do assassino de Lee Oswald,  BANG! BANG! BANG!!! - acerta três tiros nela!  

O programa é retirado depressa do ar, e não se fala mais naquilo, muito menos na implicação moral de pessoas que arriscaram em público a vida por dinheiro.

 

Meses depois:

Precedido de intensa propaganda, vai ao ar a nova edição do mesmo programa com a roleta-russa. Ao fim da abertura do espetáculo, uma formal palavra de saudade à imaginosa  roteirista de TV, morta diante das câmeras... Só. A TV tem memória curta e seu público mais ainda...

Dado o sucesso de tipos mais que popularescos de programas, os tais reality shows, é de supor-se que o público telespectador norte-americano (e por contágio o do mundo todo) acabe aceitando ver cenas reais de banalização da morte, a título de simples entretenimento. A violência e a permissividade temática de tantos filmes de aventuras, de ficção científica, de falsos defensores da lei e da ordem – tudo já calejou as consciências e as sensibilidades dessas multidões de pessoas que têm na TV  a única forma de distração, de elevação cultural, de fuga das dificuldades enfrentadas de verdade no cotidiano de cada um.

 



Marleine Paula Marcondes formulando perguntas a Márcio José Lauria

EUCLIDES NA ESPM

Indicado pela Prof.ª Marleine Paula Marcondes, estive a convite,  dia 7, na ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo.

Foi a entrega solene do Prêmio Euclides da Cunha às três turmas vitoriosas em trabalhos práticos do Curso de Relações Internacionais. A cada ano, a ESPM escolhe uma figura notável da vida brasileira para dar nome ao prêmio de estímulo a seus alunos. Em 2009/2010, o homenageado foi o autor de Os sertões, em lembrança ao centenário de sua morte.

Num tipo de entrevista ao vivo, Marleine me dirigiu perguntas que me deram oportunidade de falar sobre as preocupações de caráter internacional presentes nos textos euclidianos, notadamente no livro Contrastes e confrontos.

Pelas opiniões externadas no coquetel de encerramento da sessão pela Direção e professores da ESPM e por alunos e convidados, o original formato da apresentação foi de geral agrado.

 

15/05/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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