Cidade, a pátria concreta

 
Em um ângulo inédito - Cidade grande é outra coisa!

19 de março, nesta nossa São José do Rio Pardo, é data que se presta às mais variadas formas de análises, propostas, lembranças – tudo em nome do afeto  que esta terra desperta.

Uma das muitas maneiras de mostrar este afeto seria encher uma página dupla com fotos de todas as épocas, para mostrar como certos lugares  se modificaram ao longo do tempo. Muitas vezes para pior, bem pior. É o caso gritante dos baixos do viaduto que liga a Campos Sales ao cemitério. Caminhe pela avenida marginal e concorde comigo: não há lugar urbanisticamente mais detonado do que aquele. Um espanto.

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O prédio da Prefeitura e Câmara nos anos 60, em lamentável estado de abandono.


 

Nos dez anos em que fui vereador, vivi alguns momentos de valorização do municipalismo e das coisas locais, com as tentativas de estabelecer elos entre o passado e o presente, com projeções para o futuro. Foi esta a razão que me levou a propor o projeto de preservação do antigo prédio da Câmara Municipal, hoje Museu Rio-Pardense e Hemeroteca.

Reler as atas dos debates então travados em torno do assunto, perceber o espírito que presidiu os votos contrários à propositura, penetrar o sentido dos argumentos de que se valeram – tudo isso serve para comprovar como é fácil confundir o melhor anseio de continuidade das coisas e o mais barato dos utilitarismos. Cito um trecho do parecer contrário ao projeto de preservação, redigido por alguém  que por aqui aportou, ficou uns tempos na cidade, foi eleito a mando de terceiros  e depois desapareceu, sem deixar marca significativa de sua estada:

 “O presente projeto, embora tenha a escudá-lo alguns aspectos positivos, possui outros aspectos negativos relevantes, a recomendar sua rejeição, como segue:

1.  O local onde se situa o prédio em questão está situado (sic) em área que foi destinada pela lei que estabeleceu o plano diretor do município para atividades comerciais e afins.

2.  Seus aspectos arquitetônicos pesados e indefinidos não recomendam sua preservação. Não contribuem para o embelezamento da praça; ao contrário, enfeiam-na, sendo hoje sem dúvida o edifício mais feio da Praça Capitão Vicente Dias.

3.  Embora tenha abrigado por largos anos a Câmara Municipal e a Prefeitura nem por isso foi palco de acontecimentos históricos que justifiquem a sua preservação a esse título.”

 

Ou seja, na visão do desinformado edil,  São José do Rio Pardo não tinha história. O que mais me intrigou foi que outro vereador, de uma das mais tradicionais famílias locais, subscreveu o tal parecer, que felizmente foi derrotado em plenário.

A lei aprovada ganhou até editorial congratulatório do Estadão.

Assim, evitou-se que o prédio histórico fosse posto abaixo, para em seu lugar surgir, quem sabe,  um lucrativo estacionamento, ou um competitivo supermercado, ou um esguio prédio de apartamentos.

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Mereceu republicações por seu valor histórico  a foto    do primitivo “Altar da Pátria”, complicado monumento circular com trabalhado obelisco, próximo ao portão do decadente Jardim do Artese que dava para a atual Avenida Eduardo Vicente Nasser,  então ainda Rua 13 de Maio, que só acabava  em frente à Santa Casa.  Já deteriorado e até  danificado, o “Altar” recebeu por alguns minutos, para compor a foto que bati provavelmente em 1952,  o emblema em bronze  da República dos Estados Unidos do Brazil. A peça figura hoje no outro “Altar”, construído muito depois, mais abaixo, numa das extremidades  da já então Praça dos Três Poderes. O detalhe importante está em que o Sr. Paschoal Artese mandou buscar na hora em sua casa a tal escultura. Colocou-a no lugar que lhe caberia no monumento e se deixou fotografar ao lado dela, não sem me observar: “Se a instalo aqui, logo na primeira noite alguém some com ela...”


Jardim do Artese - 1952

 

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Pensei numa outra forma de declarar amor a esta cidade tão peculiar, tão agradável e na aparência tão nossa. Também não desenvolvo canto de louvor algum, tanto por carência de engenho e arte quanto porque, certa vez, ao armar uma louvação da mesma natureza, um amigo forasteiro (ressentido justamente com o mundo todo) enviesou meus pensamentos e minhas intenções:

- É, a cidade tem mesmo seus encantos. O que a estraga é boa parte do povinho  que mora aqui...

Não gostei nem um pouco da exagerada crítica, desfecho, aliás,  de anedota antiga. Ah, esse forasteiro viveu aqui até o final de seus dias e hoje repousa  em nosso aprazível cemitério, com privilegiada vista para o plácido rio Pardo e para verdejantes colinas que repousam nossos olhos cansados.

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Facetas da história de São José do Rio Pardo continuam assuntos fascinantes, mesmo depois de tantas pesquisas de Amélia Franzolin Trevisan, de Rodolpho Del Guerra, de Eduardo Roxo Nobre, de Cármen Trovatto  e alguns outros dedicados, competentes e pacienciosos, como Luís Trinca Filho, inventor do bem-sucedido jornal Cidade Livre do Rio Pardo, que vem dando a fatos passados um refrescante sabor de novidade. Lendo a respeito de tudo que aqui se passou, por vezes parece evidente que a cidade ficou mais pobre, tanto cultural quanto materialmente.

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Esta nossa cidade é das raras com ata de fundação, lavrada a 4 de abril de 1865. Estamos, pois, às vésperas do nosso sesquicentenário (2015), que precisa ser comemorado  com a desejável consistência.

Lamentavelmente, já nas linhas iniciais  desta ata de fundação, se perpetraram duas impropriedades culturais. A  primeira está na frase latina Gloria in excelsis Dei, em que o redator grafou excelcis.  Ainda por conta própria ou indo na onda de alguém com fumos de latinista, anunciou a criação da fuctura freguesia de São José do Rio Pardo. Nunca, em fase alguma da língua portuguesa, existiu neste adjetivo o c antes do t. Reconheça-se que hesitações na maneira adequada de armar frases ou de grafar palavras persistem até hoje. Em muitos escritos e  documentos públicos  municipais,  não é raro o desentendimento entre verbos e sujeitos, entre adjetivos e substantivos. A maioria dessas situações vexatórias, com até imprevisíveis consequências culturais, poderia ser evitada mediante consultas a assessores qualificados, a gramáticas ou a grossos livros carinhosamente apelidados de pais dos burros.

 

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Ter sido o autor da lei vigente que disciplina as datas de comemoração municipal, considero fato relevante em minha atividade pública. Rio-pardense nascido na Rua José Teodoro, tenho domicílio desde 1939 na Siqueira Campos, rua que, se venceu os transtornos elementares da  lama e da poeira, convive com barulho intenso, com indisciplina no trânsito e estacionamento de veículos, além das esporádicas enxurradas que, descendo da Vila Pereira,  encontram bueiros entupidos ou insuficientes  na recepção de águas.

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Minha rua  homenageia a memória do tenente Siqueira Campos, sobrevivente, junto com Eduardo Gomes, dos que se meteram na revolta dos 18 do Forte de Copacabana (Rio, 5 de janeiro de 1922). Deixou, além de belos exemplos de coerência e desambição, esta frase que dedico a quantos se julguem injustiçados da história local:

- Da Pátria nada se espera, nem o reconhecimento.

 

 

15/03/2014
emelauria@uol.com.br

 

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