Por causa da Celina
Lembro-me bem da carta-circular que, em meados de 1974, enviamos (Marina e eu) aos localizáveis colegas da turma de 1949, da Escola Normal Euclides da Cunha. Procuramos ali estimular aquelas pessoas que tinham sido tão nossas amigas a comparecerem a um dia de confraternização, tudo a propósito dos vinte e cinco anos de nossa formatura. O argumento mais forte foi o de que, depois da comemoração dos vinte e cinco, só caberia bem a dos cinquenta anos. E nós filosofamos sobre como aquela data meio fatídica (1999, com suas ameaças proféticas de fim de mundo) ainda estava longe, longíssimo, lá nas dobras insuspeitadas do futuro. E muita gente compareceu, bem mais da metade do total. Assistimos a uma missa especial, visitamos o velho e ainda imponente prédio, sentamo-nos nos bancos escolares que tinham sido nossos em recuados tempos, fomos ao cemitério depor flores nas sepulturas dos poucos colegas mortos, almoçamos juntos, tiramos muitas fotos, daquelas de ainda revelar no fotógrafo e depois mandar cópias pelo correio. No cemitério, como não encontrássemos a sepultura da colega Maria Ignácia Junqueira, deixamos seu buquê no túmulo de uma homônima, falecida em 1909... Em muita coisa na vida, o que vale é a intenção. O quotidiano havia tratado diferentemente aqueles rostos bem conhecidos: rugas prematuras, sinais de perdas e ganhos, muitas histórias nem sempre alegres envolvendo maridos, mulheres, filhos, algumas de netos. Tudo decorrera veloz, com muita coisa fugindo ao controle humano, principalmente os sinais exteriores de preocupações. Fizemos todo o possível para a nossa boa amizade de outros tempos se manifestar em plenitude naquele dia especial. Para geral surpresa, dois colegas amicíssimos se desentenderam por causa de um figurão político qualquer (acho que Jânio Quadros) e quase se pegaram a tapas. Lá se foi pelo ralo uma bela amizade que suportou bem o tempo e a distância, mas não a proximidade física, o choque de opiniões. As pessoas mudam em um, dois anos. Por que não muito mais em vinte e cinco? Tornam-se por vezes mútuos estranhos. Tivemos, por exemplo, enorme dificuldade de reconhecer um colega meio amarelo, magrinho, careca. Só porque ele percebeu nosso embaraço é que revelou seu nome: era de Itobi, espirituoso e comunicativo, ali arrasado por uma cirrose hepática, que lhe tirara o viço, o vigor e a fisionomia. E outros vinte e cinco anos se passaram assim num átimo. Bem que o salmista advertiu lá no começo dos tempos: mil anos para Deus são como o minuto que passou. De repente já era 1999, tempo de comemorar o jubileu de ouro da turma. Não houve nenhum fim de mundo coletivo. Nostradamus se equivocou nos seus cálculos astronômicos e na sua alquimia. Muitos fins de mundo individuais, com problemas de toda a ordem. Compareceram bem poucos: uma dúzia, ou quase, já havia morrido. Esse não podia viajar, aquele sentia-se velho demais, uma perdera todos os vínculos com a cidade, outra tinha sérios compromissos sabe-se lá com quê. Assim mesmo foi um encontro muito emotivo, com missa, visitas, almoço, fotografias, casos, muitos casos de rir e de chorar – tentativa inútil de, numas horas, pôr em dia os assuntos de um quarto de século. Um dos colegas, depois de viajar horas e horas para participar do encontro, foi embora antes de tudo terminar. É que estava preocupadíssimo com o bem-estar de um cachorro de estimação, deixado sozinho lá na sua cidade da barranca do Paraná. Tocante exemplo de fidelidade humana a um cão. Uma espécie de sabedoria coletiva pareceu presidir nossas despedidas: abraços, beijos, lágrimas e mil promessas incumpríveis. Ninguém se atreveu a marcar novo encontro, nem aos cinqüenta e cinco, muito menos aos sessenta. Mas (isso descobriu poeticamente o bom Vinicius de Moraes) nada como o tempo para passar. Cabia como uma luva a letra triste de um bolero que o Brasil todo cantou acompanhando Emilinha Borba, así se pasaram diez años... Era já 2009, o pesadíssimo ano de 2009. Por insistência já nem me lembra de quem, nosso exército brancaleone, bem reduzido em seus quadros, reuniu-se num dia de dezembro, na Stufa, para rememorar tão alegremente quanto possível os sessenta anos de formatura no Curso de Formação Profissional de Professores... Houve um indisfarçável burburinho entre as pessoas que ali almoçavam ao verem uns velhinhos ainda em relativa forma e outras senhoras, jovens de aparência, com os cabelos impecavelmente retocados, todos banhados e perfumados, sentarem-se alegres em torno da mesa: Benedicto de Araujo Netto, o Netinho, escoltado pela filha Márcia; Guilherme Bianchin com sua Nelly a tiracolo; Zulmar Rondinelli (Rodrigues), a Nininha; Eunice Navarro de Assis (e Souza), a Nicinha: Ilza Zanatta (Badini), a Zota; Maria de Lourdes Feijão (Zamarian), a Lourdinha; Maria Celina Rangel (do Val); eu. Estamos todos na foto, depois do almoço bem comportado e quase dietético... Não fomos ao cemitério.
Foi bom, sem dúvida, o nosso sexagenário encontro. Bem menos para mim, ainda sob os efeitos de um belo nocaute que a vida me aplicara, meses antes. Pensei comigo: “Ninguém deste grupinho em dissolução vai pensar em alguma coisa para daqui a um ano, dois, cinco... Sessenta anos de formatura é dose...” Pois não é que, lá pelas tantas, Maria Celina Rangel, de bem com a vida, livre na viuvez, ótima no aspecto, boa de cabeça, anunciou que num dia do próximo 2010 iria completar oitenta anos e ia dar um festão? Esperava o comparecimento de todos nós... Eu de cara achei dificílimo bater daqui a São José dos Campos para, como estranho no ninho, ver a delicada Celina ser paparicada pelos filhos, pelos netos, pelos amigos de uma vida toda. Eu não faria falta, sem dúvida. Mantivemos Celina e eu constante ligação pela internet. Mandei-lhe um ou dois livros, artigos, fotos. Ela sempre fez a parte que lhe cabia e não se cansava de dizer que dia tal seria a comemoração de seu octogésimo aniversário e queria que lá fôssemos. Mandou a localização da festança, um restaurante de luxo à margem da via Dutra. À medida que a data marcada se aproximava, seus contatos foram cessando. Então eu soube, por pessoa amiga, que Celina fora hospitalizada em estado grave, poucos dias antes daquele aniversário tão redondo. Em dia desta semana, o desfecho. Celina morreu de câncer, depois do sofrimento de muitos meses. Nós nos tratávamos de um modo bem revelador: ela era para mim a prezada colega desde 1942... E eu o prezado colega idem. Lembro-me nitidamente de Celina na classe de quarto ano primário da Prof.ª Laudelina de Oliveira Pourrat, que ainda se assinava com o nome de solteira: Laudelina Gomes de Oliveira. Era no velho prédio do “Dr. Cândido Rodrigues”. O ano, 1942, mesmo. Faça você os cálculos e perceba como muita água rolou por debaixo da ponte. O uniforme dos meninos era calça azul-marinho com suspensórios cruzados às costas e camisa branca com um monograma no bolso – CR (Cândido Rodrigues); uns tantos risquinhos abaixo dele indicavam o ano do estudo: um risquinho, primeiro, dois risquinhos, segundo... As meninas usavam avental branco e o mesmo monograma no bolsinho pregado à esquerda. Durante anos e anos eu soube de memória a lista de chamada da classe. Maria Celina tinha por companheiras Célia Mirtes Pincerato, Leda Maria de Lima, Maria de Lourdes Carvalho (essas três nunca mais vi), as gêmeas Maria do Carmo e Maria Helena Bortot, Laís Feijó, Aparecida Vicente... A mais bonita de todas, Aparecida Vicente (Cerboni), falecida há meses. Dos meninos, lembro-me de Oswaldo Pinhotti (inteligência brilhante), Sérgio Gumercindo Della Torre (que fazia invejáveis barrigueiras com barbantes coloridos), Batista Andreatta, com quem me encontro em nossas caminhadinhas pela Praça XV de Novembro. Na aula de trabalhos manuais os irmãos Clemente e Salim Aga bordaram em silêncio um enorme atoalhado de talagarça. Bordar amaciava a mão, melhorava a letra – dizia D. Laudelina. Baptista Folharini, o atual presidente do Centro Cultural tão festejado, também já era chegado a uma agulha. Acho que foi melhor alfaiate do que bordador... Eu mesmo bordei duas coisas: uma toalha de mesa, simples, com muitas flores, que minha mãe usou até rasgar, e um caprichado atoalhado de talagarça, complicadíssimo. Dei-o de presente (nem me lembro se de livre e espontânea vontade) à minha avô materna Catharina D´Elia, que o exibiu por muito tempo na modesta casa em que morava em São Paulo. Posso ainda ver aquelas meninas no orfeão da escola, cantando coisas bonitas como a Barcarola, de Offenbach (Ó grande mar, ó mar sem fim, o nosso barco embalas. É tão grato o aroma que trescalas, ó grande mar). A professora explicou o sentido de embalar e trescalar. Outra canção que me ficou dizia: Minha jangada de vela, que ventos queres levar? De dia, vento de terra; de noite, vento do mar... Parece que o poema era de Juvenal Galeno, consagrado poeta cearense. Ah! E o prato de resistência, a protofonia do Guarani , de Carlos Gomes, com letra e tudo: Formosa natureza, divina criação, tu és o meu enlevo, tu tens meu coração... Maria Celina e eu fomos companheiros de série em todo o curso ginasial. Não havia classes mistas: a classe “A” era feminina; a “B”, masculina. E só. Já na Escola Normal, dava-se a confraternização, que pôde levar pessoas até ao pé do altar. Não posso atinar por que o nosso grupinho de amigos estava na casa de Celina na manhã de um dia de junho de 1944. Era uma sala com mesa muito comprida (D. Maria Joana, a mãe, hospedava diversas pessoas da região, que estudavam no “Euclides da Cunha”) em que a gente estudava ou dava a impressão disso. Um rádio ligado deu em edição extraordinária a notícia de há muito esperada: a invasão da Europa pelas forças aliadas, nas praias da Normandia. Era o começo do fim da guerra. Maria Celina: gentil colega, amável pessoa, mulher responsabilíssima, esposa, mãe e avó de total consciência. Nosso adeus.
15/01/2011
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