Lembrando Machado de Assis

 

De acordo com todos os compiladores de bibliografias críticas de autores brasileiros, este mulato, gago e epilético é o nosso escritor mais estudado, tanto pelos historiadores da Literatura, pela crítica jornalística quanto pelos pesquisadores universitários.

A página sobre Machado, no site da Academia Brasileira de Letras, coloca à disposição do estudioso material tão copioso, que não será exagero dizer-se: uma vida toda não daria para apenas se ler tudo aquilo.

O que se escreveu a respeito de Machado de Assis vai do muito favorável ao francamente condenatório. Ele foi acusado de muita coisa, tanto de indiferença aos grandes problemas sociais brasileiros, a escravidão negra em primeiro lugar, como de ingratidão a seus familiares de origem humilde.

Enquanto o traço dominante na crítica literária foi o biográfico, o histórico ou o impressionista, não poderia mesmo deixar de haver grande disparidade de opiniões, porque também os estudiosos, mal apetrechados para análises isentas, dividiam-se, como até hoje se divide o público leitor: ou consideravam M. de A. um dos maiores escritores da língua (foi o caso de José Veríssimo), ou apenas não suportavam seu estilo, seus temas, sua maneira incomum de encarar nossos fatos históricos e nossas mudanças sociais. Essa vertente crítica por vezes rancorosa teve como principal nome Sílvio Romero, para quem Machado era falto de profundidade e pretensioso no modo de escrever. Tempos depois, Agripino Grieco, ferinamente, também investiu contra o autor de seu mais completo desagrado.

Foi preciso que os estudos críticos avançassem pelos caminhos mais consistentes do esteticismo, do formalismo, da análise estrutural do texto, para se formar em torno da obra de Machado uma como unanimidade. É que se pôde, menos arbitrariamente, separar o criador e suas criaturas, considerar seus romances e seus contos como páginas de superior elaboração, dotadas de estruturas complexas, bem diferentes do terra a terra das composições de Alencar, Macedo, Bernardo Guimarães e outros então campeões da fácil preferência popular. Além disso, ficou evidenciado que a frase machadiana é de riqueza ímpar, a ponto de ser possível a exemplificação dos principais fatos da língua portuguesa com base nos seus textos. Nenhum outro autor brasileiro contemporâneo seu explorou tanto as virtualidades e possibilidades de nosso idioma quanto Machado de Assis.

Minha inclusão entre os admiradores do grande escritor se deveu a Hersílio Ângelo (foto), um machadiano de “boa casta”, para usar a elogiosa classificação que o próprio Machado aplicou a um personagem seu. Malgrado a indiferença ou falta de alcance da maioria dos alunos, uma atenta minoria deixou-se impregnar pela consistente admiração que o exigente mestre votava ao escritor fluminense, expressa nas aulas que ministrava no curso Científico do Colégio Euclides da Cunha. Ele estudava em profundidade a obra machadiana, pena que pouco publicando dos seus estudos. Deixou material esparso pelos jornais da cidade, por um número especial da revista estudantil que, apesar de denominada “O Euclidiano”, tratou apenas de Machado, e uma primorosa análise literária do soneto “A Carolina”, publicada com destaque pela Revista do Instituto Nacional do Livro, texto que pretendo brevemente reeditar, quando menos como exemplo da seriedade com que se tratava então um assunto literário na escola secundária.

Dessa adesão inicial a um estudo permanente da obra de Machado e de seus críticos para mim foi um passo natural, que na verdade continua até hoje. Primeiro, os romances da fase romântica (Helena, Iaiá Garcia, A mão e a luva); depois  os romances do realismo psicológico (Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borba); o triste livro de saudade em que evocou seu longo convívio com a esposa Carolina (Memorial de Aires); os poemas reflexivos ou de evocação (“Uma criatura”, “A mosca azul”, “A Carolina”); os contos sutis, cheios de subentendidos e segundas intenções (“Missa do galo”, “O alienista”, “A cartomante”, “Ideias de canário”), as crônicas, a correspondência,  o teatro, a crítica literária...

Do debruçar interessado e sem pressa sobre esses textos, voltava eu informado da técnica de composição, da urdidura dos enredos, da fixação dos temas, da caracterização das personagens, da discussão dos principais fatos linguísticos. Encontrei em Machado  o escritor profundo, o modelo da boa linguagem, capaz de unir o rigor da frase clássica, que ele conhecia bem, com a fluidez de um abrasileiramento que tornou sua escritura “moderna”.

A admiração por Machado, além de não ser para mim atitude passageira, rendeu-me bons proventos. Por uma dessas felizes conjunções do acaso, em meu concurso de ingresso no magistério estadual pude por sorteio discorrer, na prova de erudição, sobre um tema de meu particular agrado – as personagens femininas nos romances de Machado de Assis.

Estudar Machado de Assis nunca foi um modismo, desses que nascem com força, sobrevivem algum tempo e depois desaparecem sem deixar marcas sensíveis. Ao contrário, o tempo só vem demonstrando que um autor da sua profundidade temática, sutileza e penetração psicológica como que destoa do pobre meio cultural em que despontou.

 

14/10/2017
emelauria@uol.com.br

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