Monteiro Lobato – um escritor em baixa
Não me lembro de haver falado a público mais dispersivo do que aquele presente à entrega das novas instalações da Biblioteca Municipal e da Hemeroteca Jornalista Paschoal Artese. O grande culpado foi o sol inclemente daquela manhã de 23 de setembro, com tudo programado para ser ao ar livre, a assistência postada defronte ao recuperado prédio que já tinha sido, através de um século, cadeia, fórum, casa de cultura, tribunal trabalhista... Por sugestão minha, acabou-se transferindo parte das atividades para o recinto da biblioteca, como única forma de impedir que alguém acabasse queimado nas cabeças desprotegidas ou sucumbindo a um ataque de insolação. O resultado foi um aperto geral e uma geral desacomodação. E assim, naquele ambiente de pouco silêncio, cumpri como pude a tarefa de relembrar a figura do patrono Monteiro Lobato. Apesar das caixas acústicas que fizeram o som alcançar grande distância, vi tantas pessoas que não puderam ou quiseram concentrar-se no que eu dizia. Em compensação, os assistentes mais próximos de mim prestaram a melhor atenção e disseram, não sei se por solidariedade apenas, que tinham gostado do que ouviram. Não é minha intenção reproduzir aqui o que disse lá, tanto que faço referência agora às muitas horas que, estudante de ginásio e de colégio, passei na silenciosa sala do antigo prédio da Prefeitura, onde funcionava a biblioteca então sem patrono e onde, de quinze em quinze dias, se instalava a Câmara Municipal: era na vasta sala à direita de quem entra, hoje o núcleo do Museu Rio-Pardense. Foi lá, sob a discreta fiscalização de um distante e fumante bibliotecário sempre às voltas com o jornal do dia, que me embrenhei pelo melhor disponível da literatura estrangeira, de Victor Hugo a Sommerset Maugham, de Camilo Castelo Branco a Cronin, de Tolstoi a Allan Poe, de Júlio Verne a Eça de Queirós, todos bem guardados na altas e envidraçadas prateleiras de madeira negra. Monteiro Lobato me foi apresentado, já na primeira série ginasial, pelo Prof. Hersílio Ângelo, que leu para uma classe, por certo mais atenta do que o público daquela manhã, um livro recentíssimo – A Chave do Tamanho, sátira às idéias fascistas e nazistas então vigentes na Europa e com muitos simpatizantes aqui no Brasil. Estava assim aberta a porta que me levaria e a alguns outros poucos leitores espontâneos à sua vasta literatura infanto-juvenil e adulta. Retirávamos os livros na biblioteca do “Euclides da Cunha”, onde pontificava a estimulante figura da culta bibliotecária Elza Leme Machado. Dela recebemos boas orientações e também as recomendações de sequer olhar para certos livros que povoavam precoce e pecaminosamente a nossa imaginação, como A Carne, de Júlio Ribeiro... A leitura deste, muito mais tarde, seria decepcionante, apenas confirmando o poder ilusório e encantatório de frutos proibidos. Continuo a nutrir admiração por algumas obras de Lobato, escritor que pagou pesado tributo aos assuntos datados, de pouco ou nenhum interesse nos dias que correm e sem nenhum futuro visível. Quem, se não estiver empenhado em tese acadêmica, lerá O Presidente Negro, Mr. Slang e o Brasil,O Escândalo do Petróleo e do Ferro, Mundo da Lua, Na Antevéspera? Daqui de onde escrevo vejo a coleção completa de sua obra, trinta e quatro volumes editados pela Brasiliense, uma das empresas fundadas por ele. Dos dezessete títulos para adulto, vencem a dura luta contra o tempo os seus livros de contos – Urupês, Negrinha, Cidades Mortas -- e suas cartas ao amigo Godofredo Rangel, coligidas em dois volumes sob o título de A Barca de Gleyre (nome de pintura famosa, reproduzida no Lello Universal e que se pronuncia glér, como frisava o mestre Hersílio). A sua própria literatura para crianças é tida agora como “difícil”, além de desatualizada no interesse que possa despertar. Tendo tratado de assuntos os mais variados, a partir de Narizinho Arrebitado (segundo livro para uso nas escolas primárias do estado de São Paulo, desde 1921), Lobato foi acertando o tom da linguagem à compreensão de seus pequenos leitores, chamando-lhes a atenção para os vícios da sociedade brasileira e propondo soluções para cada problema. Descrente da capacidade de mudança dos adultos (imagine-se o que ele escreveria a respeito do Brasil de hoje!), ML buscou outro público e estimulou-lhe a capacidade de recepção de novas idéias que não incorporassem nenhuma visão antiga ou ultrapassada. Conquistou milhares de pequenos leitores, malgrado poderosas oposições, principalmente de setores religiosos que viam nele um ateu, comunista militante, pregando um utilitário lema de vida – O mundo é dos espertos... Mas a verdade é que Monteiro Lobato deu a seus fiéis e sempre renovados leitores uma panorâmica de pessoas, fatos e coisas, vistos por olhos de um brasileiro perspicaz que inveja a organização e o espírito laborioso de outros povos, mormente o norte-americano. Criou um símbolo caricaturesco do caipira brasileiro, o Jeca Tatu, para quem quase nada paga a pena, tal o seu desânimo de homem dominado pelo meio e pelas doenças. Jeca Tatu, que surgiu como personagem do Almanaque do Biotônico Fontoura e acabou merecendo a glória de ser citado por Rui Barbosa da tribuna do Senado Federal! Para as crianças (não as de hoje, envenenadas pelo audiovisual de inspiração capitalista estrangeira) Lobato formulou uma visão panorâmica do mundo, em linguagem vivaz e colorida: a história universal e das invenções, a geografia, a aritmética, a gramática. Provou que não existiam assuntos áridos se o explicador fosse imaginoso e competente. Explicou com êxito, por exemplo, os arcaísmos e os neologismos, a força da linguagem figurada. Recontou e adaptou enredos de outros povos: fábulas e lendas, de Hércules a Peter Pan, sem esquecer o Quixote. No imaginário Sítio do Pica-Pau Amarelo, construído a partir de um modelo real, a fazenda de seu avô, elaborou as personagens marcantes de Dona Benta e da cozinheira Nastácia. Deu vida a uma boneca de pano (Emília, símbolo da inquietação e inteligência de nosso povinho); de um sabugo de milho fez sair um nobre com nome que existiu e foi amigo de Eça de Queirós – o visconde de Sabugosa; um porco virou marquês (Rabicó). Buscou nos amigos as feições e o comportamento de Pedrinho, de Lúcia, a menina do narizinho arrebitado. Criou o fantasioso pó do “pirlimpimpim”... Cometeu na sua chamada literatura para adultos um pecado insanável, qual seja o de abusar do pitoresco, do anedótico, não tendo jamais aprofundado a construção de personagens que pudessem figurar num romance de peso. Fazia caricaturas verbais com a mesma leveza de seus belos desenhos. Basta reler “O Comprador de Fazendas” ou “O Engraçado Arrependido” ou ainda “O Colocador de Pronomes”. Ele foi para milhões de crianças e adolescentes muito mais que um escritor agradável: se tudo que ele escrevia podia parecer diversão, na verdade as grandes preocupações de Lobato iam imperceptivelmente penetrando em nossas vidinhas. Foi lendo Monteiro Lobato que, a par de tomarmos conhecimento de textos escorreitos, tipograficamente limpos, equilibrados nas ilustrações, formamos conceitos, por vezes definitivos, a respeito de variados temas, porque em tudo o escritor explicitava seus pontos de vista, nem sempre de acordo com as opiniões generalizadas. Assim, foi através de seus livros que tomamos consciência de um nacionalismo irreverente e pragmático, de uma cidadania participativa e desconfiada das intenções dos mandachuvas, além de aspectos relevantes e cuidadosamente tratados da ciência, da arte, do cultivo da língua, do folclore e da mitologia. O posterior aprofundamento dos estudos e a maturidade diminuíram em tantos de nós a influência de Monteiro Lobato em nossa concepção de mundo, mas a verdade é que o nosso contato em tenra idade com esse escritor tão poderoso e tão convincente, a um tempo ousado nas idéias e conhecedor dos recursos clássicos do idioma, foi para muitos de nós uma influência ideológica marcante. E não se tratou (disso há pesquisas comprobatórias) de influência localizada em São Paulo e suas imediações, mas de uma abrangência nacional e duradoura.
14/10/2006 |